Porto, FNAC da rua de Santa Catarina, 2022
Mal cheguei ao curso de Filosofia percebi logo haver um nome proibido: Nicola Abbagnano, autor de uma história da filosofia em 14 volumes, cuja consulta teria de ser clandestina para escapar ao opróbrio de ser visto com uma simplória obra de divulgação para o comum dos mortais, pouco digna para quem já começara a ler Aristóteles em Francês ou a debitar palavras alemãs e gregas no bar da faculdade dez minutos depois de ouvidas numa aula. Aconteceu estar ainda no liceu, no tempo de uma sebenta sem bonecadas como as de agora, pela qual estudávamos os clássicos da Filosofia, quando pedi o Nicola Abbagnano como prenda de anos. Ver aqueles 14 volumes no meu quarto ainda despido de livros era como acordar e adormecer diante de um oráculo. E contemplava fascinado as gravuras e fotografias de todos aqueles gigantes com nomes sonantes quando eu nem anão era para cujos ombros poder saltar: Parménides, Anaxágoras, Empédocles, Platão, Aristóteles, Leibniz, Kant, Hegel, Fichte, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl (o rosto preferido), Heidegger, Wittgenstein (o nome preferido cujo impacto ainda hoje rivaliza com uma banda alemã de heavy metal). Não só filósofos, mas guardiões de mistérios, não só cérebros dos quais emanava uma sobrenatural inteligência, mas cerberos que guardavam o mundo das ideias, preservando-o das vulgaridades do senso comum.
Daí a, já pouco, inquietante estranheza quando hoje se chega à secção de Filosofia de uma livraria. É como se os filósofos tivessem abandonado a Escola de Atenas, de Rafael, um sumptuoso palácio onde figuras tão enigmáticas como as estátuas da Ilha da Páscoa passam 16 horas por dia a reflectir, indo cada um viver para o seu T0 com kitchenette. Como burgueses expulsos da zona nobre de uma cidade, a dois passos de belos cafés, lojas e jardins cujas sombras refrescavam ideias que, como na escola pitagórica, iriam ser reveladas a um escol de iniciados, para irem viver para um subúrbio onde facilmente podem ser vistos no ALDI a comprar iogurtes e detergente da loiça. Ao contrário do que possa parecer, não se trata de um juízo de valor que vise desdourar o bom nome destes novos protagonistas, o que pensam e escrevem. Nada disso. Continua a haver muita e boa filosofia na boca ou na pena de nomes que não têm o sex appeal de Sartre ou Camus e que, na verdade, ao contrário de Parménides ou Kant, podem ser mesmo vistos num supermercado a comprar iogurtes e detergente para a loiça, porque, ao contrário das entidades etéreas da Escola de Atenas, precisam mesmo de comer em louça lavada. A ideia é só mesmo lembrar que também na Filosofia, tal como em muitas outras coisas, há todo um mundo que morreu para dar lugar a um outro cujo fim ninguém ainda pode saber. Nem vai chegar a saber porque, entretanto, também acabará por morrer.