17 fevereiro, 2023

A FLORESTA

Estava com a filha ao telefone e, na brincadeira, resolvi chamar-lhe sopeira, não fazendo ela a menor ideia do significado da palavra, associando-a apenas ao facto de estar a fazer sopa. Se, entretanto, lhe tivesse perguntado o que era um magala, também não sabia. Ora, eu cresci num mundo de sopeiras e magalas, um mundo que já não existe, mesmo continuando a existir empregadas domésticas e militares. Porque não é uma questão de nome, mas de realidades sociais e simbólicas completamente distintas. Ora, eu tenho pouco mais de três décadas que a minha filha, uma nesga de tempo historicamente insignificante. Mas a suficiente para uma bifurcação temporal, separando os mundos de duas pessoas da mesma família que falam ao telefone. 

Posto isto, perguntemos: o que significa "Grécia Antiga", os cerca de setecentos anos que vão de Homero a Epicuro? E "Idade Média"? À volta de mil anos, e mesmo que falemos de Baixa e Alta Idade Média também são séculos. E o que é o século XVIII, o tal das Luzes? E o século XX, que começa em Sarajevo e acaba em Berlim? Também um dia irão estudar o século XXI, meu e da minha filha, mas o que verão esses futuros estudantes de História? O mesmo que um avião que sobrevoa a floresta da Amazónia: uma mancha verde. Pois é isso que a História no dá: padrões, uniformidades, regularidades, esquecendo, tal como numa floresta sobrevoada, a complexidade, a contingência, subtis flutuações cada mais invisíveis à medida que nos afastamos. Não deve ser nada fácil para o futuro estudante perceber que há um pai de um mundo e uma filha de outro. Tão difícil como para nós imaginar Gravilo Princip a assassinar Helmut Kohl com tudo o que há entre os dois.