25 fevereiro, 2023

J'EST UN AUTRE

Reli há dias um romance que já tinha lido há mais de 40 anos e do qual já nada me lembrava a não ser duas coisas: uma, ser uma história de amor, a outra, que gostei imenso de ler e na altura me marcou, embora sem já saber porquê. Desta vez, porém, detestei-o, quase no limiar do insuportável. Nada de anormal ter, em tempos, gostado de coisas das quais já não gosto por essa parte de mim que me levou a gostar já não existir. Mas basta um pequeno esforço de memória para compreender por que gostei. É como me ver agora numa fotografia, aos vinte anos, na praia. Já não sou essa pessoa, não penso o que pensava, não sinto o que sentia, os meus olhos já não vêem o que viam aqueles olhos, mas lembro-me do que pensava, sentia e o que viam aquele olhos. Mas o que agora me aconteceu é assustador. A pessoa que agora detestou o livro, pensa na pessoa que gostou tanto dele e foi por ele marcada, e não consegue vê-la ou sequer situá-la. Já não se trata de ver o mesmo no outro, ou o outro no mesmo, mas de me confrontar com uma absoluta alteridade dentro de mim mesmo. Neste caso, não há uma fotografia na qual revejo o que fui, ficando assim impedido de me ver, como se fosse truncado, roubando-me a mim mesmo sem deixar rasto. Olho, e o que vejo é apenas um vazio, um espaço em branco onde antes esteve o que pensava e sentia, ou os mesmos olhos que liam palavras que dedilhavam virtuosamente as cordas do espírito e que agora geram uma irritante cacofonia. Eis, pois, uma parte de mim que morreu, antecipando, diria que com alguma pedagogia, o que irá um dia acontecer ao todo que sempre foi mais do que a soma das suas partes.