05 fevereiro, 2023

A GRAVIDADE E A GRAÇA

Jordi Barreras |Santa Coloma de Gramenet, Barcelona, 2022

Por muito bizarro que pareça, vi esta fotografia em exposição no Verão do ano anterior, ainda a sair do forno a fumegar. Bizarro, pois não parece ser o tipo de fotografia que se espera ver num sítio aonde se vai para ver fotografias. Uma fotografia pode servir para muita coisa mas, em princípio, não para ver duas vizinhas a conversar num daqueles sítios onde os turistas nunca vão porque não há nada para ver, nem sequer para os que lá vivem. Mergulhadas nos seus pensamentos e preocupações, limitam-se a passar pelas coisas sem já darem conta do seu peso material e visual. Mas, sendo um optimista, não desisti desta fotografia, resolvendo guardá-la. Quanto vezes acontece ver uma coisa digna de ser fotografada, sacar da máquina e depois vai-se a ver e nada, enfim, uma tremenda desilusão? É o que acontece comigo, nada a fazer. Já o bom fotógrafo, seja como esteta, documentarista, encenador, filósofo ou fisiognomista, põe-nos à frente dos olhos o que não vemos. 

E o que aqui vejo é o que aprendi a deixar de ver: o meu prédio, os meus contentores, os meus carros, a minha vizinhança, a minha rua, o meu bairro, a minha terra, assim como os prédios, contentores, carros, vizinhança, ruas, bairros e terras da esmagadora maioria das pessoas que vivem neste mundo. Eis a dimensão puramente física e quase pornográfica desta fotografia, da qual foi expulsa toda a Graça. No entanto, consigo ver, ainda que estreita, uma porta de salvação. Veja-se este quadro de Pieter de Hooch. Qual a diferença entre o que faz o pintor e o fotógrafo a não ser um fazer com os pincéis o que o outro faz com a máquina? Será que as duas mulheres holandesas vêem a sua realidade com o mesmo encanto e fascínio com que nós a vemos 400 anos depois? Ora, quem sabe se daqui a 400 anos não olharão da mesma maneira para as vizinhas de Santa Coloma de Gramenet, redimindo-as assim para sempre do seu triste destino.