30 janeiro, 2023

TEORIA DA REMINISCÊNCIA

Lucas Cranach, O Velho | A Idade do Ouro, c.1530,  73x105,  Alte Pinakothek (Munique)


O tema da Idade do Ouro foi popularizado por Ovídio nas Metamorfoses, mas encontramo-lo muito antes em Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo ou no bíblico jardim, igualmente representado pelo pintor alemão. Muito mais do que um mero locus amoenus, o que se apresenta é uma antropologia amena e enlevada por uma igualmente amena meteorologia que, impedindo o corpo de sentir frio ou calor, ajuda a ignorá-lo ainda mais. Ignorá-lo não é esquecê-lo por via de uma ascese, seja a dos estóicos ou dos padres do deserto. Como no leão de Zaratustra, ascese ou renúncia implica uma consciência do que quer largar no solo, enquanto a alma vai subindo como o balão que a criança deixa escapar. Aqui não há nada disso, só uma natureza em estado puro, envolvendo pessoas e animais numa mesma inocente atmosfera.

Que já não o mundo do pintor, pois representar significa estar fora do que se representa. O pintor pode representar a inocência ou inconsciência dos seus protagonistas, percebê-la, poder chegar mesmo a invejá-la. Mas por muito que se esforce já não pode, como Eurídice depois de olhada por Orfeu, voltar para trás. Ainda tenta um ardil, mas com a infantil astúcia da criança que acredita que a sua pequena maldade passará despercebida aos olhos dos pais: as folhas. As folhas são parte importante do locus amoenus e dispostas de modo aleatório pela natureza, crescendo livremente ou reagindo aos caprichos do vento ou movimentações dos insectos e pássaros. E é aqui que o pintor faz batota, acreditando, ingenuamente, na nossa ingenuidade. Que, como a dele, se evaporou num mundo que ficou muito longe de se parecer com um jardim. Mas onde, como o escravo do Ménon interrogado por Sócrates, podem os seres humanos da Idade do Ferro sentir vagamente a sua brisa.