31 janeiro, 2023

O LUGAR POR VIR

Claude Lorrain | Paisagem Idílica ao Pôr do Sol, 1670, 72x96, Alte Pinakothek (Munique)

Tal como o tigre e o gato que embora mamíferos e felinos são bastante diferentes, também este quadro de Lorrain e o de Cranach mais abaixo, apesar de partilharem uma mesma idílica e prazenteira atmosfera, estão muito longe um do outro. E refiro-me apenas ao conteúdo, pondo de lado aspectos formais como o desenho, a luz, a cor ou a perspectiva. Cranach revela um cenário mítico, enquanto Lorrain um cenário utópico, sendo categorias distintas. No primeiro, vemos um mundo a-histórico e reduzido a um jardim onde seres humanos e animais se confundem num deleite quase vegetal que define a sua existência. Podemos contemplá-lo, invejá-lo, sonhar com ele e até sentir nostalgia. Mas nostalgia pelo que, enquanto seres humanos propriamente ditos, nunca fomos, nem alguma vez viremos a ser. Mas olha-se depois para o quadro de Lorrain e já somos nós quem ali está: há a cidade, com o que isso implica de político, social, económico, cultural, as pessoas estão vestidas e tocam instrumentos como nós. E já não basta esticar o braço para colher uma maçã, sendo preciso dominar o animal para poder dominar a terra, ou seja, é preciso trabalhar. Porém, sendo nós, também não somos nós, pois onde há humanidade há também dor, conflito, domínio, relações de poder e um agónico fosso entre o mundo do trabalho e o do prazer, nada que aqui se possa ver.

Daí o cenário de Lorrain ser tão a-histórico como o de Cranach, mas num polo oposto: não como anterior, mas posterior à história, esse enorme palco onde a humanidade representa os seus dramas e comédias, umas vezes como calvário onde agoniza, outras como ressurreição para novas vidas. Mas que nós, em plena representação, podemos entender como ideal regulador da vida humana na busca de uma felicidade ainda por encontrar. Não existe ainda, é verdade, mas olha-se para o cenário e parece-nos verosímil. Tanto a utopia, como é o caso, como a distopia, são um exercício da imaginação do qual não está ausente, para o bem ou para o mal, a verosimilhança como categoria ideológica. Utopia não é, por isso, necessariamente uma ausência de lugar, podendo apenas ser o que ainda não teve lugar. Do lado esquerdo da paisagem vê-se, quase sepultada na vegetação, a ruína de um mundo irremediavelmente perdido no passado. No lado direito, um outro também perdido mas esperando por nós num futuro por encontrar. Um mundo de harmonia entre sociedade e natureza, razão e sentidos, prazer e realidade,  em que o trabalho já não é factor de alienação mas de auto-realização, programa filosófico, político e mesmo económico com o seu epicentro no século XIX. Se isso é mesmo possível já será outra conversa. Mas seja ela qual for, a beleza do quadro é intocável.