11 janeiro, 2023

O VÍRUS DA POPULARIDADE

Paris, casa de banho de um café, 2022

Nunca li e não sei se ainda estou a tempo de ler A Divina Comédia. Mas há coisas que sabemos dela mesmo sem a termos lido. Por exemplo, que o Paraíso e o Inferno são compostos por círculos, camadas, graus. Estar no Inferno é mau, mas há níveis piores que outros. Estar no Paraíso é bom, mas com níveis mais perfeitos que outros. E por falar em bom, tal gradação parece-me também boa no mundo em que vivemos, que não é o Inferno, o Paraíso ou o Purgatório, mas se calhar uma mistura dos três. Evita o maniqueísmo e a limitação de uma visão binária das coisas. Podemos sentir dificuldades com a inflação, mas o que é isso se comparado com um povo que passa frio e fome? Por outro lado, é bom ter emprego, mas um emprego onde uma pessoa se sinta realizada é bem melhor. É bom aprender a relativizar sem termos de ser relativistas onde não é aconselhável sê-lo, saber que a vida é uma escada com muitos degraus que podemos ir subindo ou descendo, de modo continuado ou alternado. 

Daí a minha dificuldade com este cartaz do Ministério da Saúde francês. Percebe-se a sua bondade, um seropositivo não tem de ser como os estigmatizados leprosos do Ben Hur, sendo bem mais desejável um mundo em que a doença seja apenas doença e não a expressão de uma ideologia ou preconceito. Kafka bem nos provocou com a presença de Gregor Samsa no seu quarto, um verdadeiro dedo na nossa ferida narcísica. O que fazer com aquele monstrinho viscoso e repelente mas cuja cabeça e coração continuam iguais? Parece impossível, mas houve um tempo em que os doentes com HIV mais pareciam os leprosos do Ben Hur ou Gregor Samsa. Isso acabou. Mas também não creio que se deva ficar com inveja de alguém só por ter HIV, que é o que todos sentimos a olhar para este rapaz que parece viver na esfera mais superior do Paraíso. Sim, viver com HIV é, antes de mais, viver. Mas também me parece sensato que em vez desta abolição do mal, e o HIV, como toda a doença, é um mal, seria preferível um mundo onde não tem de ser tudo bom. Não por acaso, os adjectivos têm graus, e basta isso para entender que nem tudo na vida tem de ser superlativo, seja para o bem ou para o mal.