Como é hábito no comboio, como em qualquer outro transporte, vai toda a gente com os olhos fixados no telefone. Menos uma rapariga dos seus quinze anos, ar tímido e humilde, que dedica toda a atenção a um daqueles xaropes que nem precisam das rendinhas sobre a capa para provocar comichão no sistema nervoso central. Basta só mesmo a capa, rosada e delicodoce, para, como o algodão, não me iludir quanto às virtudes literárias que iam libertando a jovem da maçadora viagem, já que o título, A Virtude do Prazer, bem poderia ser o de outros ligados a uma honrada tradição filosófica. Fui então confrontado com a seguinte questão: preferia ver uma carruagem cheia de pessoas de olhos postos num telefone, ou em romances de duvidosa qualidade? O meu teste do algodão foi pensar qual dos grupos estaria mais ameaçado pela demência de Quixote, cujo cérebro, como todos sabemos, secou. Imbuído de espírito altruísta, a minha ideia seria então proteger esse grupo de si mesmo, impondo-lhes assim uma realidade alternativa. Pelo sim, pelo não, fui então saber coisas do romance que a rapariga lia. Violet Westcott é viúva do conde de Riverdade que, afinal, já era casado, não tendo por isso direito aos seus títulos e bens. Mas entretanto, eis que o seu destino se volta a cruzar com o do libertino marquês de Dorchester de cuja memória nunca se libertou desde que, em tempos, foi por ele seduzida. O que irá acontecer?
Pois, não sei, nem nunca irei saber. Saberá a jovem mas também o que apenas me importa é a sua actividade mental enquanto lê o romance, em comparação com a dos outros que ali vão pelos seus dedos, bem menos róseos do que os da Aurora de Homero. O cérebro de Quixote não secou por ler ficções. O próprio livro de Cervantes é uma ficção. Aliás, se olharmos para os clássicos da literatura, iremos ver muitas histórias como as de Violet, mudando apenas a qualidade literária, o que faz com que a vida mental da rapariga possa não ser muito diferente da de quem lê Anna Karenina ou a Bovary, hissopadas pelo cânone literário. O cérebro de Quixote secou porque mergulhou numa realidade paralela que o desviou do mundo real, perdendo a perceção clara de si mesmo e do mundo onde vive, uma consciência condenada a ideias acriticamente absorvidas como as de quem se diverte a ocupar centros do poder político em Washington ou Brasília, moinhos de vento, como tantos, e cada vez mais, outros, erguidos pela Internet que, diariamente, rega os hemisférios direitos e níveis sub-corticais de quem não sabe que o resto se encontra em seca severa.