15 janeiro, 2023

O SER E O TEMPO

Arrastou-se uma sucessão de dias tristes, horrorosos, uns após outros afogados no abismo cinzento e bocejante do tempo. [...] Um futuro sem esperança e sem saída passou-lhe pelo espírito e encheu-o de terror, mas cada dia foi ficando mais enevoado e baço e, por fim, deixou totalmente de existir. O presente reclamava-o com urgência na sua cínica nudez, e reclamava-o tão terrível e insolentemente, que acabou por dominar por completo todos os seus pensamentos, todo o seu ser. Saltykov-Shchedrin, A Familia Golovliov


O tempo, meteorológico, será sempre bom tema para início de conversa. Mas também para os breves segundos em que se desce com um vizinho no elevador, ou para os dois dedos de conversa no clássico encontro de supermercado com quem não se tem intimidade suficiente para continuar a conversar, mas se tem a suficiente para impedir que se diga só "Bom dia". Este tempo é uma entidade exterior e objetiva que nos envolve de maneira igual, se chove ou não chove, se faz frio ou calor. E mesmo que a impressão do Inverno ou do Verão varie de pessoa para pessoa, dizer bem ou mal deles é tão íntimo como dizer qual o bacalhau preferido ou o clube do coração. Mas com o tempo cronológico tudo muda. Imagine-se alguém que no supermercado pergunta "Então como vai?" e tem como resposta "Nem sabe como vão os meus dias afogados no abismo cinzento e bocejante do tempo". Ou "Oh, com um futuro sem esperança e sem saída". Ou "Cada dia vai ficando mais enevoado e baço". Ou "Ah, nem sabe, o tempo deixou totalmente de existir". Ou "Nem lhe digo, o presente reclama-me com urgência na sua cínica nudez, dominando todos os meus pensamentos e o meu ser". E a outra pessoa, em pânico, desejosa de fugir para o corredor dos iogurtes ou dos detergentes, como se a outra tivesse começado a explicar como a sua vida mudou desde que leu o Kamasutra. 

Isto porque o tempo cronológico é coisa íntima que, ao contrário do outro, nos envolve internamente numa espécie de conflito edipiano. Cronos é nosso pai, é nele que nascemos, vivemos e morremos, destroçando-nos, vorazmente, à vez, fazendo-nos sentir a vida de diferentes maneiras. Ou enquanto o tempo meteorológico é a porta da nossa casa, por onde todos nos vêem entrar ou sair, o tempo cronológico é o seu interior, onde não entra qualquer um. Como diria Sophia de Mello Breyner, o tempo é a substância que habitamos, mais, ou menos, livremente, e o modo como a habitamos, como a sentimos, como somos engolidos por ela ou vemos como um deserto infinito, diz apenas respeito a cada um. E mesmo quando as pessoas dizem que andam sem tempo para isto ou para aquilo, a correrem de um lado para o outro, não é do seu tempo que falam, mas disto e daquilo que toda a gente pode observar. Ao contrário do que possa parecer, falar da falta de tempo não é falar de tempo, mas apenas partir-se da experiência interna do tempo como condição formal para falar disto e daquilo que é material, não da verdadeira substância, cujo excesso de peso nos esmaga, mas cujo excesso de leveza também. E ninguém gosta de aparecer esmagado diante de outra no supermercado.