14 janeiro, 2023

LUZ INCANDESCENTE


Em Meetings with Russian Writers, Isaiah Berlin fala dos seus encontros com escritores e intelectuais russos durante a sua estadia na URSS, ávidos de contactos com pessoas vindas do mundo livre. Conversando sobre literatura com a viúva de um grande amigo de Boris Pasternak, assassinado na Grande Purga estalinista, diz-lhe que Tchekov é ainda muito admirado e representado no Ocidente. E aproveitou para contar que, no dia anterior, Anna Akhmatova lhe havia confessado não compreender a razão disso, por considerar o seu universo monótono, sem chama, nele o Sol nunca brilhar, estar tudo coberto por uma cinzenta neblina, um mar de lama com desgraçadas criaturas nele atoladas. Enfim, não a vida, mas uma caricatura da vida. 

Ora, a razão invocada por Akhmatova para não compreender o sucesso de Tchekov é precisamente a razão do sucesso de Tchekov. Juan José Millas, num livro chamado O Mundo, fala de uma mulher que «chorava com a mesma naturalidade com que se produzem os fenómenos atmosféricos suaves, como aquela chuva que não se vê e se chama molha-tolos porque molha da mesma maneira que a verdadeira». Eis o teatro de Tchekov, ou de muitos dos seus contos, personagens que vivem como fantasmas, desejos que se evaporam no ar, que choram quando riem, que gemem quando cantam, com a sensação de vestirem roupa húmida mesmo em dias de calor, céu azul e pássaros a chilrear no jardim. Akhmatova, ela própria, daria uma tremenda personagem tchekoviana. Talvez fosse isso. A coada luz de Tchekov poder, afinal, ferir os olhos.