09 janeiro, 2023

A POESIA ESTÁ NO PARQUE DE ESTACIONAMENTO

Poznan, 2019

Há um célebre cartaz de Vieira da Silva, intitulado A Poesia Está na Rua, extraordinária coisa por não ser a história conhecida por nela abundarem eflúvios poéticos. Direi mesmo ser a história, por natureza, despoética, não significando isso nada de especialmente mau nem nada de especialmente bom, apenas que no mundo acontecem coisas como outras acontecerão por cima ou por baixo dele. Também um parque de estacionamento, como lavar a loiça ou despejar o lixo, não é poético nem despoético, apenas um sítio onde as pessoas largam os carros para poderem ir a sítios onde não podem entrar com os carros, nomeadamente no escritório onde trabalham, no banco aonde vão depositar dinheiro ou na sapataria aonde vão comprar sapatos para melhor carregarem nos pedais que aceleram, travam e embraiajam os carros que largam nos parques de estacionamento. Mas se a realidade, como a história, até porque a história é a realidade e a realidade histórica, também não é por natureza poética, pode uma câmara municipal tornar a poesia mais real, não num sentido de as barcas começarem a gritar sobre as águas ou de levar as mulheres a correr, correr pela noite, até porque as noites estão frias o que não é bom para as constipações, mas de poder levar pelo menos algumas pessoas que entram e saem dos respectivos carros, em vez de correrem logo para o escritório, para o banco ou para a sapataria, a olharem um pouco para as nuvens e, olhando para as nuvens, olharem também um pouco melhor para si, até porque, como diria um conhecido filósofo alemão, se bem que noutro contexto e outros pressupostos, é por vezes a olhar para o que nos escapa por cima de nós que melhor podemos ver o que se encontra eternamente estacionado dentro de nós.

Versão traduzida e completa  [Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, Relógio d'Água]

Nuvens

Para descrever as nuvens
muito teria de apressar-me,
pois numa fracção de segundo
deixam de ser estas e começam a ser outras.

É sua propriedade
não se repetir
nas formas, tonalidades, poses e configurações.

Sem o peso de qualquer lembrança,
pairam sem dificuldade sobre os factos.

Mas nem testemunha-los podem,
pois logo se dissipam em todas as direcções.

Comparada com as nuvens,
a vida afigura-se firme,
quase duradoura, eterna.

Perante as nuvens
até uma pedra parece nossa irmã,
na qual se confia,
mas elas, enfim, umas levianas primas afastadas.

As pessoas que existam, caso queiram,
e depois morram uma por uma,
as nuvens não têm nada a ver com
coisas
tão estranhas.

Sobre toda a tua vida
e sobre a minha, ainda não toda,
desfilam com pompa, como desfilavam.

Não têm obrigação de morrer connosco.
Não precisam do nosso olhar para navegar.