27 janeiro, 2023

FUMO

Torres Novas, 2023, Estação Rodoviária

Ando a sonhar bastante e, seja bom, mau ou neutro, detesto sonhar. Deve ser por isso que, com uma ou outra excepção, detesto o surrealismo. Mas não tenho como escapar. São os sonhos, como os pensamentos, que vêm ter comigo, mas enquanto posso fazer por esquecer pensamentos, do sonho só me livro quando ele quer. Sonhei que estava numa sala de aula a passar o 12 Angry Men, oiço bater à porta, e entra um colega meu (real) acompanhado do William Defoe. Encaro a situação como normal, e até com algum entusiasmo por ver ali um actor, e quero falar do filme e do realizador. Acontece ele não conhecer nem o filme, nem o realizador, o que me deixa perplexo e confuso. O sonho, felizmente, esfumou-se, mas guardo ainda com alguma vividez o que nele vivi de uma maneira tão realista.

Se pensar agora nas minhas vivências passadas, as ideias que tenho delas não são muito diferentes da do meu sonho, e quanto mais afastadas no tempo, mais parecidas com o sonho ficam, como se quisessem também esfumar-se, embora resistam sempre a fazê-lo. Lembro-me de partir um braço há uns 20 e tal anos. De tudo, incluindo a dor. Mas a dor já não existe, apenas a ideia da dor, como tenho a ideia do prazer dado pelo sabor de um Toblerone do qual também não tenho agora qualquer sensação pela simples razão de não estar a comê-lo, antes ovos escalfados com ervilhas dos quais, neste caso já tenho uma forte sensação, tal como da música que estou a ouvir. O modo como tenho apenas uma ideia da queda que me fez partir o braço não é diferente da visão do William Defoe e do meu colega a entrarem na sala. Como em certos quadros surrealistas, uma espectral, gasosa, fantasmagórica atmosfera, depurada de sons, cheiros, cores, texturas, na qual vislumbro um não menos gasoso fantasma que sou eu. Vejo as pessoas à minha volta depois de partir o braço, sei quem são, que foi de noite, o sítio onde foi. O que vivi pode ter sido real e verdadeiro, ao contrário do que sonhei. Mas, depois, olha-se para o que fica, e o que fica é apenas fumo de um fogo há muito extinto.