21 dezembro, 2022

PLASMACEIRA

Lee Lorenz [cartoonista falecido este mês]


O que está agora a dar em museus são as exposições imersivas. Nem mesmo clássicos como Goya ou Velásquez escapam à tecnologia que nos permite andar entretidos dentro dos seus quadros ou vê-los em registo animado. Não surpreende. Passa-se com os quadros o mesmo que com os livros: não têm botões, não são interactivos, nada mexe, enfim, uma pasmaceira. Já me tem acontecido, em viagem, numa sala de espera ou mesa de café, ver alguém, a começar por mim mesmo, pegar num livro diante do qual se está uns breves instantes até sacar de um telefone que depois já não larga. O que até pode estar longe de significar uma mudança para pior, sobretudo com aqueles livros que só se conseguem tolerar se estiverem fechados. O problema será quando todos os livros passarem só a ser tolerados quando fechados, e os quadros tolerados quando, neste caso, formos nós a estar fechados neles. Nunca entrei numa dessas exposições. Se é para entreter, prefiro o Jardim Zoológico ou sentar-me numa esplanada a ver passar a natureza humana enquanto tomo uma bebida. O mais próximo que estive de uma certa sofisticação tecnológica foi uma vez com uns óculos pesados no museu do Chiado para "entrar" numa sala do Carlos Relvas, e outra para, sentado numa cadeira, dar uma volta pelo jardim de Monet, não em Giverny, mas num corredor da Orangerie com borboletas adejando sobre a minha cabeça por entre primaveris chilreios. Não deixou de ser engraçado, mas senti-me, algo desconfortavelmente, a voltar aos meus tempos do bibe azul no João de Deus, o que, diga-se em abono da verdade, também não é especialmente grave desde que não se torne fixação ou volte a acreditar no Pai Natal.

Anda lá por fora uma discussão sobre este tipo de experiência imersiva ser ou não vantajosa para a nossa relação com a arte. Para mim vale o mesmo que perguntar se, através de um dispositivo tecnológico, os filmes de Manoel de Oliveira ficarem mais acelerados, isso irá beneficiar o seu cinema, questão que até seria pertinente por haver momentos em que não temos a certeza se estamos a ver um filme ou um quadro. Mais literalmente animados ficariam de certeza, tal como um caracol ficará mais radical se o pusermos a voar com um propulsor a jacto em vez da concha. A imaginação não tem limites e um homem até se pode apaixonar por uma boneca insuflável com a voz da Laureen Bacall e sentir-se o mais feliz e realizado do mundo com a sua vibrante relação amorosa. Seja como for, quando a tecnologia se sobrepõe à obra de arte, isso é vantajoso para a tecnologia, não para a arte. Quando um garoto joga num computador ou playstation está diante de imagens. Mas o que o fascina ali não são as imagens, nem sequer o movimento das imagens, mas o processo de pôr as imagens em movimento. Também a experiência de contemplar o quarto de Van Gogh em Arles ou o campo de trigo com corvos numa tela pintada a óleo, não é a mesma que a de entrar num babilónico salão rodeado de écrans com três metros de altura, em que os corvos andam para ali a esvoaçar e presumo que também a crocitar, o que até poderá fazer as delícias de um caçador que naquele dia trocou a charneca pelo museu, lamentando apenas ter deixado a caçadeira em casa. Quanto mais sofisticada for a imersão na pintura, mais esvaziado sairá o sentido estético e artístico de quem pagou o bilhete para se divertir. O que também não tem mal, o divertimento é um bem, e a arte, sejamos honestos, de divertido nada tem.