Façamos uma espécie de epistemologia da crítica com duas perguntas, cujas dicotomias, embora grosseiras, podem ajudar: deverá um crítico produzir mais conhecimento ou opinião? E, no caso de ser opinião, deve seguir um gosto e critério mediano, ou reflectir o gosto ou critérios ideológicos do crítico? Em relação à primeira, e, insisto, apesar da relativamente falsa dicotomia, creio que uma crítica será sempre mais opinião do que conhecimento pois caso contrário soará mais a uma tese académica, coisa que desejamos bastante longe quando nos sentamos a ler um jornal. Mas, não deixando de ser opinião, esta não deve sobrepor-se a critérios de natureza mais técnica e formal, devendo o próprio crítico tornar-se num sujeito epistémico, dirimindo o mais possível a pessoa por detrás do crítico. É por isso que, não sendo sequer crítico nem ter capacidade para tal, se me perguntarem quais os melhores filmes de sempre, não irei nomear alguns dos meus preferidos. Porque são preferidos para mim e, neste caso, isso vale só para mim, e não quero atrapalhar a vida a quem procura referências consensuais e objectivas, isto, claro, na medida do possível.
Esta aborrecida lengalenga vem a propósito do filme Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, passar a ser considerado pela Sight&Sound o melhor de todos os tempos, a partir de um painel composto por 1639 críticos de cinema, professores, jornalistas, etc. Nada tenho contra o filme. Pelo contrário, gosto muito dele, como gosto bastante de Delphine Seyrig (aquela voz, apesar de não ser bonita, é de outro mundo), onde, mais uma vez, tem um excelente desempenho. Entretanto, tento perceber a razão por que é considerado o melhor filme de todos os tempos, destronando os clássicos do costume. O que consigo encontrar são coisas como (no Público) «É a primeira vez que um filme realizado por uma mulher alcança a primeira posição»; ou «Jeanne Dielman, aclamado por muitos como uma obra-prima, tem, ao longo dos anos, ganhado o estatuto de obra-charneira na história do cinema, pela abordagem feminina/feminista, e pelo próprio modo de olhar e filmar que propõe»; ou «Não é a única novidade da lista da Sight&Sound, que traz um outro filme realizado por uma mulher cineasta para os dez melhores: Beau Travail (1998), da francesa Claire Denis, obra que estava em 78º lugar em 2012»; ou «Estas novidades reflectem necessariamente uma outra abertura a outros olhares, para lá do "branco ocidental masculino" que foi durante muito tempo a base das listas canónicas»; ou ainda «O número de filmes dirigidos por cineastas negros aumentou igualmente, de um em 2012 (Touki Bouki , do senegalês Djibril Diop Mambéty, em n.º 93, este ano em 66.º lugar) para sete em 2022».
O que eu gostaria que me dissessem, mas dissessem mesmo, é por que razão o melhor filme da história do cinema já não é o filme A porque Jeanne Dielman é melhor, já não é o filme B porque Jeanne Dielman é melhor ou o filme C porque Jeanne Dielman é melhor. No caso de não me explicarem exactamente porquê (e não me venham com a pífia justificação das «composições estáticas e frontais e fixos blocos em tempo real», como vi no The New York Times, ou de recorrerem ao habitual truque de escrever coisas tão esotéricas e tecnicamente tão sofisticadas para dizerem o que quiserem sem poderem ser contestados, então, neste caso, proponho que se faça na crítica o mesmo que nos contratos que assinamos com o banco ou uma operadora de telecomunicações: no final, umas letrinhas pequenas para informar que aquela crítica vincula a ideologia do crítico, que se sobrepõe ao próprio filme enquanto objecto cinematográfico.