Nunca senti, nem creio que alguma vez vá sentir, o apelo da imensidão do deserto ou do oceano. Aquela tentação de me tornar um insular cogito rodeado do nada absoluto por todos os lados, isto, por assim dizer, pois, em rigor, o nada absoluto não é representável, mesmo numa tela completamente branca ou preta ou em 4' e 33'' de silêncio. Mas sinto o apelo do nevoeiro. A minha cartografia matinal é sempre a mesma ao longo do ano, apenas circunstanciais variações para acrescentar alguns quilómetros aos meus devaneios. Fosse um simples esboço a lápis, o desenho seria sempre a mesmo: as árvores (oliveiras, figueiras, sobreiros, azinheiras, eucaliptos e, por último, porque mais importante, os meus muito amados pinheiros mansos, para além de outras árvores cujo nome desconheço, porque, ao contrário de Ulisses, não tive ninguém que mos ensinasse), compridos lençóis de terra que se vão prender a verticais ribanceiras salpicadas de pequenas oliveiras, a serra ao fundo, a erva, as vacas, os cavalos, o ladrar dos cães ou mesmo o chilrear dos pássaros, que vão rodando, como rodam também os frutos, figos e amoras substituídos por marmelos que agora também começam a definhar. E os caminhos de terra que me levam e voltam a trazer por este Éden matinal, num vital e cirúrgico interlúdio entre ruídos de mundanidade.
O esboço, como ponto de partida, será pois o mesmo, mas vem o Outono e tudo muda. Sobretudo com o nevoeiro, que resolvi guardar ontem, como guardamos outros momento de felicidade, acreditando, ilusoriamente, claro, que assim nunca os iremos perder. O nevoeiro, reduzindo o mundo visível a alguns passos de distância, pode suscitar a ilusão de poder partilhar com o deserto e o oceano a possibilidade de nos isolar do mundo. Não partilha. O deserto e o oceano são lençóis de cetim que voluptuosamente afagam a alma egocêntrica ou narcisista. Um Cefiso onde nada se vê a não ser a devolução da imagem de quem nele se reflecte. Contemplo o deserto, contemplo o oceano e só vejo um eu. Nada que ver com uma paisagem campestre e rural coberta de nevoeiro. O mundo está lá, mas, entretanto, o esboço que no Verão e Primavera dá lugar a minuciosos e cirúrgicos desenhos rodeados de luz e cor, emerge agora, pudicamente, através de maviosos vestígios de cores, formas ou texturas mais sugeridas do que expostas, como um achado arqueológico ainda inacessível às mãos do arqueólogo. O nevoeiro acentua a nossa individualidade, é certo. Como quando apagamos a luz na cama, fazendo com que o nosso eu se acenda antes de se juntar, momentos depois, à escuridão do quarto. Sou mais eu envolvido pelo nevoeiro do que numa rua rodeada de prédios e atravessada por carros. Mas um eu que avança num mundo que, apesar de reduzido a impressões, não perdeu o seu peso, a sua textura, a sua morfologia, que permanecem sempre, e que depois o desfazer do nevoeiro e o Sol fazem voltar na sua pujante nudez. Mais do que um lençol de cetim que afagamos mais para sentirmos a nossa própria mão do que o lençol, o nevoeiro é como uma daquelas combinações que se vêem nos filmes do tempo da Sophia Loren, Anna Magnani e afins, que desvelam o corpo enquanto o velam ou, se quisermos, o velam enquanto o desvelam. Ao contrário do deserto e do oceano, onde a nossa pequenez diante do infinito nos obriga a agigantar para dentro de nós próprios como alguém que se põe em dedos dos pés e ergue a cabeça para não se afundar, o nevoeiro não nos tira o mundo debaixo dos pés, pelo contrário, acentua o seu murmurar enquanto pisamos o seu caminho de terra, pedindo-nos para sermos apenas o que somos enquanto vamos acompanhando o seu amável mistério, para, ainda antes do duche que lava o corpo, chegarmos a casa de alma lavada. E findo o interlúdio, o ruído do mundo surgirá então como aquelas músicas da rádio que não se ouvem em casa mas que, lá fora, até vai dando para bater o pé e abanar a cabeça, ainda que involuntariamente.