06 dezembro, 2022

DUELO À SOMBRA



Apesar da cor, eis um duelo pacífico, discreto e silencioso, o que faz todo o sentido se pensarmos nas livrarias ou bibliotecas como lugares tranquilos e impermeáveis às turbulências do mundo. O que já não se pode dizer é serem as turbulências do mundo impermeáveis à silenciosa tranquilidade das livrarias e bibliotecas. Dizia Heinrich Heine que, na fronteira entre dois países, a polícia pode controlar e confiscar toda a bagagem, incluindo livros. O que a polícia jamais poderá controlar e confiscar são as ideias levadas na cabeça de quem a atravessa para depois as espalhar, ideias vindas quase sempre de silenciosos livros, escritos em silenciosos escritórios, gabinetes ou bibliotecas, frágeis pedaços de papel que facilmente ardem, se rasgam ou desfazem na água, mas que vemos na origem de revoltas, insurreições, revoluções, muitas delas derramando o sangue da mesma cor destes dois silenciosos pistoleiros de ideias. Por vezes, não sem uma enorme ironia: jamais passaria pela cabeça de certos filósofos, romancistas ou poetas, a ideia de estarem a escrever livros que viriam a incendiar a história. Pobre Kant, pobre David Hume, nos seus silenciosos gabinetes, produzindo tranquilamente a ocitocina que, anos depois, ajudou turbulentas mentes a dar à luz, obscuras ideias que eles próprios abominavam. E, ao contrário dos Westerns, nos quais, sob a luz intensa de um Sol escaldante, só um dos pistoleiros irá resistir, os silenciosos duelos nas acolhedoras e civilizadas livrarias e bibliotecas nunca acabam. Haverá sempre um Piketty para cada Hayek enfrentar, como aquele terá sempre o seu Hayek, morrendo ora um ali, ora outro acolá, mas ressuscitando sempre depois sabe-se lá onde, fazendo com isso com que o filme nunca chegue ao fim.