01 dezembro, 2022

JANGADA DE PEDRA COMPARTIDA


Há livros dos quais gosto tanto que me fazem ficar meio atordoado e sem saber o que dizer sobre eles, e quando assim é mais vale ficar calado. Aconteceu-me no Verão passado ler um desses livros: Os Sete Livros da Diana, de Jorge Montemor (Montemor-o-Velho, cerca de 1520) traduzido e prefaciado por Nuno Júdice. Um texto literariamente soberbo, tanto na prosa como na lírica, ou ainda nos seus aspectos formais, como acontece com a distinção entre momentos líricos e narrativos muito parecidos com a distinção que vamos encontrar na ópera entre árias e recitativos, e, não menos importante, texto de um arejamento ideológico que deixa de boca aberta um leitor do século XXI. Como explicar o texto de um português beirão ser traduzido por um português algarvio? É simples: porque Os Sete Livros de Diana está escrito em castelhano. Como será simples a razão por que está em escrito em castelhano: porque o autor viveu em Castela, sob os reinados de Carlos V e Filipe II (Filipe I, para nós outros, como soía dizer-se noutros tempos) tendo por isso cultivado o bilinguismo. Só que esta razão já não é assim tão simples. E não é, porque autores insuspeitamente inscritos no mais puro cânone da literatura portuguesa, como Gil Vicente, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, escreveram tanto na língua de Cervantes (admirador de Montemor e influenciado por ele) como na de Camões. Camões que, já agora, foi também bilingue. E como nos explica o linguista Fernando Venâncio, Camões não revolucionou a posteriormente designada língua de Camões, o que faz é modernizar a língua portuguesa mas a partir do próprio castelhano.

Há uns anos, eu e o meu filho tínhamos acabado o prato principal num restaurante em Madrid, combinando partilhar uma sobremesa. Escolhida esta, viro-me, meio para o empregado, meio para o meu filho, pensando em voz alta como se diria "partilhar" em espanhol. Percebendo de imediato, esclareceu o empregado com um sorriso: "compartir", palavra que já não viria a esquecer. Já muito recentemente estava a ler uma tradução portuguesa do romance Plenilúnio, de Antonio Muñoz Molina, quando vou dar com a palavra "compartir". Veio-me logo à cabeça a ideia de o tradutor se ter esquecido de traduzir a palavra. Acontece. Fosse finlandês ou húngaro seria mais grave. Mas, de repente, passou-me igualmente pela cabeça uma outra ideia que viria a revelar-se mais luminosa e verdadeira: "E se...?". E sim, a palavra não foi traduzida do castelhano para o português porque, pura e simplesmente, existe nas duas línguas. O que nós, portugueses e espanhóis, não podemos compartir é o título de campeão mundial de futebol. Claro que, nascido em Portugal como Jorge de Montemor, em vez de Castela, Leão, Andaluzia ou Euskadi, será sempre por Portugal que torcerei. Mas se não for o "compartir" de Camões a vencer, que seja então, mais por igualdade do que por aproximação o "compartir" de Cervantes.