14 dezembro, 2022

ESTÁDIO DAS OPERAÇÕES CONCRETAS





Não nego ter começado por sentir alguma satisfação ao ver jovens interessados no Der Leierman e no seu esforço para trazerem o lied de Schubert para a sua garagem depois de mais um dia de escola. Mas uma garagem será sempre uma garagem, anulado-se rapidamente a minha satisfação por uma versão que, de tanto querer exacerbar a beleza da canção original, acaba por assassiná-la. Começa desde logo por um pecado original: a sua queda num videoclip, transformando a força de uma imagem condensada em poucas palavras, numa descontrolada verborreia visual. Como se precisássemos de ver o drama da personagem para o compreender, tal como as crianças que ainda precisam de uma experiência física ou visual para entenderem realidades mais complexas. A beleza da canção passa também pela simples e despojada beleza do poema, beleza tanto mais sagrada quanto mais a ouvirmos de "olhos fechados". Por muito indulgentes que sejamos perante a bondade pedagógica da ideia, fica assim difícil aceitar esta destruição do que foi criado para ser uma sóbria experiência musical feita também de imaginação poética. 

Depois, a redução da componente instrumental a um solitário piano não é circunstancial, antes vital para a essência dramática da composição, soando como eco da melancolia do narrador mas também como expressão da triste condição da personagem, unindo unissonamente os dois destinos através de uma evidente similitude melódica e rítmica. Apetece dizer sobre esta solitária relação entre a voz e o piano o mesmo que explicou David Lynch sobre a sua parceria com Angelo Badalamenti: "Sento-me ao lado dele e falo com ele, e ele toca aquilo que eu digo." Neste caso, o piano tocando o que diz o cantor, tal como este diz o que toca o piano, acentuando-se assim a solidão de ambos no íntimo recato da canção. Ora, afogar este sóbrio diálogo entre piano e a voz num épico e majestático oceano de instrumentos, efeitos sonoros e vocais, e espúrias variações rítmicas, transforma uma bela canção numa vazia e plástica manifestação kitsch. Mais do que uma versão pop do Leierman, o que aqui se descobre é uma infantil aversão ao Leierman, como aquelas crianças que enchem o leite de chocolate e açúcar para o conseguirem beber. O resultado é ver a última canção de uma melancólica Viagem de Inverno, destruída por uma avassaladora e tonitruante trovoada, neste caso, mais eléctrica do que romântica.