15 dezembro, 2022

EM LOUVOR DO SINGLE





A ideia de single, a simples ideia de se entrar numa loja a que se chamava discoteca para comprar uma canção que se iria ouvir até à exaustão, parece hoje absurda. Bem diferente da experiência global ou mesmo conceptual de ouvir um LP. Os singles já não existem mas podemos continuar a reproduzir a sua natureza no modo como ouvimos música, dividindo uma composição musical em unidades parciais e independentes de uma visão englobante de uma obra musical, como uma sinfonia, um quarteto, um concerto para piano ou uma ópera. Divisão que, apesar de despedaçar uma obra em partes dispersas, não deve ser desprezada. Façamos o seguinte exercício: no tempo de vida que nos resta, vamos apenas poder ouvir 50 composições, cada uma dividida em unidades parciais, como andamentos, árias, ou por exemplo cada Allemande de cada uma das Suites Francesas. Posto isto, escolheremos uma sinfonia inteira ou apenas um andamento dessa sinfonia? Qualquer melómano dirá ser um crime de lesa-música separar um andamento ou ária da respectiva sinfonia ou ópera, que deverão ser ouvidas como um todo. Mas se numa sinfonia houver um andamento que apreciamos menos ou mesmo nada? Por que haveremos de queimar centenas de outras unidades que gostaríamos muito de ouvir no tempo que nos resta, só para respeitarmos a integralidade de uma obra da qual só apreciamos partes? Uma obra pode ser, na sua generalidade, excelente, mas ter partes que o são menos do que a de outras obras que não são na sua generalidade excelentes. Daí que no momento de escolhermos devamos não pensar em compositores, escolas, sinfonias, concertos, sonatas, andamentos, ficando apenas uma compilação de unidades dispersas e independentes entre si. Já não existem singles, mas talvez seja a sua natureza que nos leva à verdadeira essência da fruição musical. Não a formal, conceptual, académica, mas a que nos permite, em 5'34'' ou 12'45'' de música, uma experiência única e irrepetível como um simples quadrado que, entre o seu início e o momento em que se desfaz na boca, não precisa do chocolate inteiro para ser verdadeiro e nos deixa marcas na cara sem termos que pensar que está embrulhado em folhas de estanho.