16 dezembro, 2022

A TELHA


Nem o título deste quadro, nem o artista são agora para aqui chamados. Ou ainda se é bom, mau, se gosto ou não gosto. Apenas me interessa o olhar da criança que fui encontrar a olhar para ele, bem mais atento e demorado do que o dos adultos que por ele passavam. Se gostei de ver a criança a olhar para o quadro? Gostei, ainda que sem fazer a mais pequena ideia do que estaria acontecer na sua cabeça. Mas alguma coisa estaria, havendo certamente uma criança antes e outra depois de o ver. Mas terá a criança idade para ver este quadro? Ou, dito de outra maneira: será por este tipo de quadro que deve começar a sua relação com a pintura? Há uma razão para perguntar. Quis parecer-me pelos pais da criança, que andavam por ali perdidos como um urso polar na Guiné Equatorial, que aquela criança não estará habituada a ver obras de arte, e que apenas foi ali parar porque o TripAdvisor quis que os pais da criança fossem ali parar, rodeados de quadros como este. Daí a minha pergunta, noutra versão: supondo ser a sua primeira vez num museu, terá sido melhor começar por este ou por um Prado, uma National Gallery, um Louvre ou um Uffizi? Imagino um psicólogo, com sincero entusiasmo, a dizer que sim, por este. Que, não sendo figurativo, será mesmo o ideal para dar asas à mente da criança, estimular a sua imaginação e criatividade, podendo mesmo ser o primeiro tijolo de um futuro artístico. Que o seja, quero lá saber, e a Psicologia também pouco me interessa, tanto como aquelas revistas que vêm, ou vinham, com os jornais de domingo. Pode parecer idiotice perguntar se tem a criança idade para este quadro. Vindo de quem vem não seria de de espantar mas, mesmo assim, creio que vale a pena indagar. 

Sim, o quadro não tem sexo, violência, ou um velho pistoleiro com um chocantíssimo cigarro no canto da boca. Claro que nenhuma criança irá ficar traumatizada ou ter pesadelos por causa dele, que olhe pois à vontade, e o tempo que quiser. Mas será por este tipo de quadro que deverá começar? Na literatura, deve começar por lengalengas, os contos de Andersen, de Beatrix Potter, de Perrault, ou começar pelo Ulisses e Mrs Dalloway? No cinema, pelo Bambi, de novo Beatrix Potter, Charlot, ou começar por Godard e Bergman? Na música, por cantigas de embalar ou por John Cage e Cecil Taylor? É muita pergunta, mas respondo apenas lembrando o interesse ou mesmo paixão dos grandes pintores modernos pela pintura clássica, o modo como, de lápis na mão, copiaram, por vezes obsessivamente, pintura medieval, renascentista ou barroca. Ou mesmo pré-histórica ou de culturas ditas primitivas. O seu primeiro tijolo. Depois foi cada um à sua vida para construir o seu edifício, com grande benefício para a história da arte e do nosso prazer. Que Godard tenha dito que os filmes têm um princípio e um fim mas não necessariamente por esta ordem, é lá com ele, nada contra, podendo no seu caso até fazer sentido. Mas não é assim com tudo. Por exemplo, na natureza, onde primeiro há uma semente, depois a flor e finalmente a romã. E ao contrário dos grandes pintores modernistas que não se esqueceram dos antigos, nós tendemos muitas vezes a esquecer a ordem e os ritmos da natureza. Espero que o primeiro tijolo desta criança, neste caso, uma telha, não lhe tenha acertado na cabeça.