18 novembro, 2022

VIEW-MASTER


Quando era miúdo havia lá em casa um view-master. Lembro-me apenas de um disco com cenas do Peter Pan e de outro com paisagens americanas que tinha o Grand Canyon e as Cataratas do Niagara. A experiência de ver ali as imagens era bem diferente da que tinha ao ver televisão, cinema ou revistas e não pela estereoscopia propriamente dita. Era a sensação de intimidade. Enquanto um filme na televisão ou cinema surge num espaço aberto, o view master implica encostar os olhos ao aparelho para poder aceder, em exclusividade, às imagens que antes apenas miniaturizadas se deixavam antever. Imagens depois reveladas quase como numa câmara escura, onde a "Revelação" surge com um duplo sentido: químico e religioso. Com o view-master basta trocar a química pela mecânica que faz o disco andar à roda, já que o religioso se mantém igual: uma realidade especial, dada quase confidencialmente na intimidade do aparelho bem encostado aos nossos olhos, tal como uns binóculos que igualmente revelam o que antes estava inacessível ao olhar. 

Quando comecei a usar máquina fotográfica digital, achei piada à ideia de poder ver a realidade pelo ecrã LCD, fosse pela liberdade de movimentos, fosse por ver o alvo da fotografia sem ter de prender os olhos à máquina. Mas, com o tempo, regressei ao óculo, à máquina bem encostadinha ao rosto, regressando assim a uma maior intimidade entre os olhos e o alvo, desligando da percepção o supérfluo espaço envolvente. É como dizer ao alvo: só te quero a ti, só tu me interessas, apenas tu és objecto da minha atenção. Ora, tal intimidade entre os olhos e o objecto possuído por eles (ou serão os olhos a ser possuídos pelo objecto?) é um estado do olhar que praticamente morreu com a substituição das máquinas fotográficas por telefones. O prazer, a intimidade, a confidência, a revelação, deram lugar a sucessões de incontinentes disparos como se saídos de um pistoleiro com Doença de São Vito. Isto também porque a memória deu lugar a um disco externo com terabytes de informação encaixotada numa gaveta. Uma memória vicariante, uma visão vicariante, uma consciência vicariante, tornando a própria realidade vicariante e, no meio de tudo isto, nós próprios não menos vicariantes, cada vez mais longe de um mundo para o qual deixámos de saber olhar.