No mercado, uma senhora aproxima-se da velhota a quem costumo comprar fruta.
- Bom dia, minha senhora, isto é tudo da sua lavra? - Apontando para duas grandes caixas com citrinos.
- É sim, minha senhora.
- E é tudo o mesmo preço?
- Não, as tanjas são a X euros e as marroquinas a Y euros.
- Marroquinas?! Então não tinha dito que era tudo seu?
- !
Dava para perceber que não se conheciam, nem a senhora tinha ar de estar na brincadeira, o que até seria normal como divertido início de conversa entre amigas ou conhecidas. Pronto, não sei explicar. O que bem vi foi a baralhação da velhota, entretanto salva por qualquer coisa que fez desviar a conversa. O que se passou na sua cabeça com as marroquinas foi o mesmo que na de toda a gente que não pensa num molho de chaves por causa de uma certa cidade transmontana, que não imagina logo um castelo pintado de branco com uma outra beirã, como também não pensa num pedaço de madeira a flutuar no Atlântico ou, mais a sul, em fêmeas de canários. Daí o meu estúpido entusiasmo num mercado de Atenas ao ver o meu país como palavra grega para laranja, acreditando que é em Portugal que pensam sempre que compram ou comem laranjas. Infelizmente, nem tudo o que é estúpido em mim tem a bondade de passar depressa mas, neste caso, percebi logo que é coisa que não lhes passa pela cabeça, tal como na da minha velhota com nomes femininos de coisas ligadas a Marrocos.
A sua incapacidade para se desligar de um substantivo para o transformar num adjectivo, não passou de um inofensivo processo mental em virtude do seu claro e não menos inequívoco sentido. Mas processo mental que no Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é apresentado como ameaça ao pensamento ao expurgar a linguagem de qualquer equivocidade, logo, abertura, flexibilidade, polissemia. Um processo que António Bento designa por ortosemantização [pag.18]. Palavra um pouco dura de roer, mas que faz todo o sentido se pensarmos na rigidez, dureza e rectidão dos ossos (em oposição às partes moles como o fígado), associadas a um significado (semântica). Mas se ficarmos pela vulgar ideia de ortodoxia, veremos que é também o que se passa com o processo mental da velhota, ao conseguir pensar apenas em fruta, ficando assim impedida de acompanhar um outro processo mental. Sendo as marroquinas fruta da sua horta, o seu sentido é, neste caso, verdadeiro. O problema é ser fechado e inflexível, tornando inacessíveis outros sentidos verdadeiros ou parcialmente verdadeiros, sobretudo quando o seu for falso ou parcialmente falso. Ser ortodoxo não implica não ter razão. Umas vezes tem-se, outras não. A questão é não perceber a diferença entre tê-la ou não tê-la pois para o ortodoxo ela é sempre tida por inerência, seja pela sua superior inteligência, ou por decreto de uma autoridade política, religiosa ou outras. Depois é o que se sabe: a arrogância e a prepotência de quem se sente legitimado para impor verdades tão objectivas como a de uma marroquina ser um fruto e não outra coisa qualquer.