02 novembro, 2022

SANGUE SÁBIO

Alfonso | Madrid, 1939

Quanto aos princípios, tenho tanto de anti-fascista como de anti-comunista, ou, para respeitar a simetria, tanto de anti-comunista como de anti-fascista. Porém, vi-me sempre mais como anti-comunista e a sentir mais necessidade de rejeitar o comunismo do que o fascismo. Hitler e Mussolini morreram em 1945. Tinha 13 anos quando Marcello Caetano rumou ao Brasil e na Grécia foram despedidos os coronéis, 14 anos quando Franco deu o último suspiro. Isto para dizer que desde muito cedo passei a ver o fascismo como uma realidade mais própria do Canal História. Sim, havia a América Latina, mas isso era outro planeta. Já com o comunismo, o canal foi outro: o muro foi abaixo, estava eu a chegar aos 30 anos, queda à qual ainda hoje resistem vários países, havendo mesmo ainda em Portugal um partido chamado comunista, nome do qual não se envergonha. E sempre vi o lado social e moralmente inebriante do comunismo, turvando fanaticamente as consciências de muita gente inteligente embora com as melhores das bondades e intenções.

Estava errado. O comunismo não passou de um megalómano projecto que alguns arquitectos e engenheiros dos séculos XIX e XX lançaram a partir dos seus ateliers, vistos por muitos como sedutores por força de certas circunstâncias sociais e políticas. Mas que com o tempo, apesar de alguns focos de insana e orgulhosa resistência, veio a tornar-se numa relíquia como também hoje o serão Alphonse Daudet ou Alexandre Herculano na literatura. Já o fascismo é muito mais do que um projecto político e ideológico. É uma matéria orgânica sempre latente no adâmico jardim do qual fazemos parte, um atávico húmus de uma decomposição criativa da qual florescem sinistras flores carnívoras que se alimentam das suas vítimas. Mais do que a força de circunstâncias, serão as circunstâncias de uma força inerente ao que há de mais primário na natureza humana que trazem eternamente o fascismo de volta. Claro que há vários fascismos e, apesar de discordar, até admito a tese de Portugal não ter sido fascista. E também creio serem Hitler e o nazismo, enquanto subprodutos do fascismo, irrepetíveis. Seja como for, como diria Margaret Atwood, a história pode não se repetir mas por vezes rima, e nas veias do ser humano corre sempre um sangue infecto que pode subir à cabeça para depois descer à acção. Basta um bom magafone e milhões de almas órfãs de identidade e futuro. Mais do que uma ideologia, um regime, um sistema de poder, o fascismo é um estado de alma. E as almas, por vezes, enlouquecem.