28 outubro, 2022

ARTE SEM H

Artemisia Gentileschi | Auto-retrato enquanto alegoria da pintura

A terrível explosão de Beirute fez grandes estragos num palácio da cidade, tendo morrido a sua proprietária, colecionadora de arte. Um dos quadros da sua coleção, seriamente danificado, foi entretanto atribuído a Artemisia Gentileschi, estando agora nos Estados Unidos a ser recuperado. O tema é mitológico: após cometer um crime, Hércules é condenado a tornar-se escravo de Ônfale, passando a fazer trabalhos atribuídos às mulheres, como fiar ou tomar conta de crianças. Nesta versão da pintora italiana, aparece com um fuso na mão em vez da habitual e viril maça. Há dias, pretendendo mostrar que não existe uma pintura feminina ou masculina, mas apenas pintura, sugeri a ideia de que se alguém estiver diante das várias versões de Judite a degolar Holofernes sem saber quem as pintou, não vai perceber se foram pintadas por pintores ou pintoras. Ao dizê-lo, tinha em mente a belíssima, mas não menos terrível, versão de Artemisia Gentileschi, sem com isto pretender anular uma possível diferença entre ser homem e mulher nos processos mentais de quem pinta, podendo também a pintora italiana ser disso um bom exemplo, sem que haja contradição.

Artemisia Gentileschi foi violada aos 17 anos pelo seu professor de pintura, tendo na sequência disso passado por uma situação infame em tribunal. Podemos naturalmente depreender que ao pintar Judite a degolar Holofernes ou a feminilizar um Hércules submetido ao poder das mulheres, o seu processo psicológico pode não ser idêntico ao de um homem. Mas isso está longe de implicar uma pintura masculina ou feminina que coincidam com uma pintura de homens ou mulheres. Sim, antes de o serem, os pintores são homens e mulheres, e quanto a isso não há volta a dar. E até teria a sua graça lembrar que o H de Holofernes ou Hércules é o mesmo de Homem, nada que um bom freudiano possa desprezar para depois se divertir ao vir falar em obras de harte. Mas o mais importante num quadro é o próprio quadro, não os latentes processos psicológicos dos seus bastidores. Podendo ser academicamente interessantes, esteticamente não têm qualquer valor. Um quadro é um quadro, não uma tese ou um caso de estudo em Psicologia ou Psiquiatria, embora existam, sendo o próprio Freud disso um bom exemplo. Mas se porventura um quadro fizer muita questão de revelar o seu sexo, o mais certo é estarmos diante de um mau quadro. Por muito prazer que Artemisia tenha sentido em humilhar Hércules ou a descarregar a sua raiva sobre Holofernes, uma obra de arte é só mesmo uma obra de arte.