09 novembro, 2022

PULCHERRIMA LINGUA

Cemitério da Lapa, Porto

Não digo que não seja agradável entrar numa casa-museu e ver tudo como se acabássemos de lá entrar há 150 anos a convite dos donos da casa. O chão encerado, mobílias a reluzir, o cheiro a madeira e uma imaculada ordem que, como na física aristotélica, nada admite fora do seu lugar natural. Mas não deixa de ser desconfortável pensar que está tudo como há 150 anos, quando sabemos que o tempo, ao contrário da mão humana que dá forma ao informe, é um incansável escultor que deforma para criar espontaneamente novas formas como um Pollock embriagado e sem mãos. Daí ser tão estranho como um corpo embalsamado com a sua ambiguidade entre o estar vivo e estar morto. Que não existe numa ruína. Para além das formas que o tempo esculpiu, o que impressiona na ruína é a sinceridade e honestidade de desenho inacabado, de esboço que gosta de ser esboço sem querer ser pintura. Vi há dias uma exposição temporária com uns esboços de Rubens. Eu detesto Rubens, toda aquela grandiosidade e opadíssimas formas, vejo-o ao longe e fujo logo. Mas os esboços comoveram-me, aquela simplicidade, incompletude, a sensação de não chegarem a ser o que podiam ser. Com as ruínas é o mesmo, mas ao contrário, não por não chegarem a ser, mas pelo que deixaram de ser.

O que é encantador no Latim, seja no chão ou parede de uma igreja, num cemitério ou numa iluminura, é ser uma ruína em forma de língua, por oposição à língua viva que todos falamos com a sua imaculada ordem sintáctica e semântica, como uma casa com tudo no seu perfeito lugar. O Latim também tem as suas regras gramaticais e bem se queixa quem o estuda. A questão não está na língua mas na nossa relação com ela, neste caso, não como uma hermética, mas viva língua estrangeira, como o húngaro ou o polaco, mas uma língua morta associada a gente morta e coisas mortas. Por isso, se naquele túmulo aquela frase estivesse em português, não seria a mesma coisa. E se num túmulo recente estivesse aquela frase em Latim seria de um kitsch insuportável. Quem nada sabe ou pouco sabe de Latim, olha para esta frase como um não arquitecto ou não historiador de arte para uma abadia ou um velho palácio em ruínas. Sente a morte do edifício, a sua ruína, a sua antiguidade, a dificuldade em imaginar o que possa ter sido antes de o tempo o agarrar com as mãos, e talvez ainda mais por isso sentirá a força da sua beleza. Também no Latim há uma força, um magnetismo que o torna numa língua transcendente, não devido à nossa ignorância mas porque a sua morte o levou para longe de nós. Daí também ser a língua certa para os exorcismos. Faria algum sentido provocar o Diabo em português, inglês ou alemão? Não, teria de ser em Latim, uma língua de outro mundo, para almas do outro mundo e mundos de outras almas. PULVIS ES   PARVUS ET MAGNUS IBI SUNT. Experimente-se dizer isto em Português e toda a beleza daquele túmulo se esvairia. E mais belo fica com a erosão de letras, fazendo desaparecer ainda mais essa língua já desaparecida, no limite, uma língua perdida algures num canto obscuro da Biblioteca de Babel, envolvida no seu encantatório mistério.