Uma pessoa entra no armazém chinês em busca de molduras e perante aquela babilónica dimensão não sabe por onde começar. Procuro e procuro e procuro até concluir que o que devo procurar é alguém da casa com o mapa do tesouro. Procuro e procuro e procuro até que finalmente vou dar com um chinês ao fundo de um longo corredor, entretido com uma prateleira. Chego junto dele e:
Eu: Boa noite!
Ele: [Silêncio] continuando a arrumar como, se em vez de mim, apenas ali estivesse o mesmo oxigénio que já lá estava.
Eu: BOA NOITE!!! (num tom irritado que até a mim surpreendeu).
Ele: (sequissimamente) Diz.
Eu: Ando à procura de molduras, podia dizer-me onde encontrar?
Ele: Lá atrás (Inclinando ligeiramente a cabeça para o lado direito).
Isto, conseguindo a proeza de não chegar a ver-me, enquanto eu passava a ver a muralha da China. Ora, mesmo que só arranhasse o Português, haveria de saber o que é bom dia ou boa noite. Mas, ainda que não, se alguém chega ao pé dele para falar com ele, ainda para mais funcionário, até um indígena da Nova Guiné entenderia que seria com ele e não com a prima que ficou na China. Como se não bastasse o malcriado desprezo pela minha pessoa, o que ele entende, no seu oriental laconismo, por «lá atrás», coincidia com metade do gigantesco espaço onde uma moldura acabara de se transformar em agulha num palheiro. De novo concentrando-me na ingrata tarefa de a encontrar «lá atrás», esqueci o assunto, já agora, numa superfície comercial chamada "Glamour" mas que com funcionários destes deveria chamar-se "Chinadown". Mas eis que depois à saída emerge a parte reptiliana do meu cérebro, levando-me a detestar o chinês, os chineses, a China, o cheiro, o plástico, toda a quinquilharia fatela daquele armazém de gente malcriada, enfim, detestar tudo o que lembrasse chineses e chinesices e a pensar que deviam era estar todos a divertirem-se durante a Revolução Cultural para verem como era em vez de chegarem aqui com ar de quem acabou de sair da mais alta torre de Xangai.
Mas não é racista ou xenófobo quem quer e eu não estarei fadado para o ser. Estando já a entrar naquela fase de candidato a acólito de André Ventura, logo começo a lembrar-me dos portugueses que não responderam ao meu cumprimento ao entrar num elevador, na sala de espera de um consultório, ou naquela farmácia numa noite em que só lá estava uma pessoa, dos portugueses que me atenderam mal ao balcão de um café, dos portugueses a quem escrevi emails prestáveis por pensar que seriam do seu agrado, sem obter qualquer resposta, dos portugueses que enfrentam diariamente o trânsito como se fosse um cenário de guerra, dos portugueses que num estádio de futebol expulsam crianças por estarem com uma camisola da outra equipa, dos portugueses que entram em escolas para agredir professores, dos portugueses que abrem a boca sem perceberem a diferença entre o início e o fim do aparelho digestivo, enfim, tantos portugueses tão ou mais malcriados do que aquele estúpido chinês que, vindo de um país com cerca de 1,5 biliões de habitantes, terá muitos milhões de conterrâneos bem mais delicados, educados, polidos e prestáveis do que o bronco que fala a mesma língua que eu e que surge em cada esquina deste país como se acabasse de sair de uma caverna.