29 novembro, 2022

PENSAR DE GATAS


Esse velho militar voltara a ser criança sem muito esforço. Não há sempre um pouco de amor pela infância nos soldados que experimentam as desgraças da vida o bastante para terem sabido reconhecer as misérias da força e os privilégios da fraqueza? Honoré de Balzac, A Mulher de Trinta Anos.

Em condições normais esta imagem teria direito (ou mereceria, para alguns) a um daqueles blandiciosos textos que se escrevem sempre que aparecem gatinhos, para depois ser laureado com dezenas de corações vermelhos, "likes" e réplicas, cada uma das quais com açucaradas notícias do seu gatinho. Umas das grandes vantagens da literatura é permitir aprender coisas. Não quer isto dizer que a literatura sirva para aprender coisas, até porque isso seria arruinar a própria literatura e apesar da romântica beleza das ruínas, uma literatura arruinada está muito longe da sua verdadeira essência, e para desgraças já basta entrar hoje numa livraria. O mesmo se passa com a música. Podemos aprender coisas a ouvi-la, por exemplo, a diferença entre uma sonata e uma sinfonia, ou entre uma ópera barroca e uma romântica, mas bastante mal seria ouvi-las só para aprender a defini-las e distingui-las, assim como quem vai a uma enciclopédia. Digamos então que aprender coisas através da literatura se trata de um proveitoso efeito secundário, não de um objectivo. Daí que ninguém leia A Mulher de Trinta Anos para aprender o que quer que seja, embora também aí se aprendam coisas que ficam difíceis de aprender quando, em vez de se estar a ler romances nos quais se aprendem coisas, antes se escrevem coisas sobre gatinhos por também se publicarem fotografias de gatinhos, como foi agora o meu caso e por isso me penitencio. Todavia, regozijo-me por acreditar, esperando assim redimir-me, que encontrei o texto certo para a fotografia certa, uma harmoniosa conjugação entre uma blandiciosa fotografia e um texto que, não sendo, por um lado, blandicioso, nem didáctico ou científico por outro, merece ser louvado pelo seu contributo para o normal enriquecimento de qualquer ser humano, incluindo naturalmente o que poderia estar diante de um bom romance em vez de a esparramar blandiciosas palavras sobre gatinhos, açucarando com isso o cérebro em demasia, órgão do corpo que, na ausência de um pâncreas cortical, poderá sofrer penosas e prolongadas consequências como hipertensão emocional ou, ainda bem pior, uma fatídica regressão intelectual que faz o pensamento gatinhar em vez de andar, como seria normal e creio mesmo que desejável.