«São os conceitos como as figuras que se vazam em moldes: sempre hão-de trazer a própria forma da matriz em que se engendraram. E, quando esta seja ilustre, pouco importa que a matéria o não seja. Estátuas vemos de barro altamente prezadas ou, ao contrário, as de ouro valem pouco, quando informes» D. Francisco Manuel de Melo, Os Relógios Falantes, Prólogo
O primeiro texto anda há vários dias a circular no elevador do meu prédio. O segundo estava afixado ao lado do elevador de um outro prédio (oxalá já não esteja, com a vassoura regressada ao seu lugar natural). Agora que se fala tanto do elevador social, não deixa de ser sintomático o primeiro texto estar dentro de um elevador, e o segundo fora e até com uma ligação ao submundo das vassouras. Em Os Relógios Falantes, D. Francisco Manuel de Melo põe um relógio da cidade e um relógio da aldeia a conversarem um com o outro. Tivessem estes dois textos a mesma possibilidade, seria interessante observar, não obstante as naturais dificuldades num mútuo entendimento, a diferença entre quem vê o mundo a partir de dentro, e quem o vê a partir de fora. Fossem os prédios de habitação como os altos edifícios empresariais, onde a importância de quem neles trabalha é aferida pela altitude, a senhora do estendal seria uma forte candidata a morar mais acima, e assim não ter que apanhar mais com os edredons dos andares superiores. Enquanto a senhora da vassoura não passaria do rés-do-chão ou seria mesmo relegada para uma cave com uma janela apenas para, através de um vidro cor-de-rosa, poder apreciar os sapatos de quem entra no prédio para depois subir no elevador. Se, entretanto, estes dois textos andassem na escola, o mais certo seria pertencerem a escolas diferentes. Muito provavelmente, o primeiro frequentaria uma escola privada, na qual os professores são obrigados a ensinar e os alunos a aprender, preparando-se assim para poder um dia morar num 4º ou 5ºandar. Já o segundo haveria de andar numa escola pública, ficando assim eternamente condenado a viver num Hades social, bem guardado pelo seu Cérbero que não deixa sair de lá ninguém e cujos residentes, perdidos na obscuridade, vão ficando cada vez menos aptos para serem pessoas livres e emancipadas, numa sociedade que se desejaria toda ela livre e emancipada.