Há uns bons anos, no castelo de Silves, vi, meio horrorizado, uma exposição com instrumentos de tortura da Inquisição, repetida mais tarde em Toledo num museu dedicado a essa nobre causa. Enfim, diria que já possuo um bacharelato em tortura inquisicional. E apesar de em ambas as vezes estar um calor mortal, tornando tudo ainda mais pesado, lá consegui chegar ao fim sem desmaiar. Talvez isto explique por que razão ao passar por esta simpática e pitoresca igreja do Porto, o que vejo é ela estar a ser lenta e sadicamente esmagada por dois sinistros algozes urbanos, numa câmara de tortura municipal. Como se não bastasse, o meu imaginário cinematográfico leva-me ainda a ver um estranho ente a aproximar-se sorrateiramente da cruz como um daqueles horríveis monstros do Aliens- O Oitavo Passageiro, a infernizar a Sigourney Weaver. Enfim, uma igreja cercada e agonizante até ao último suspiro. O que pode explicar o desespero das duas figuras à janela, de braços abertos, as quais, tratando-se de uma igreja protestante, não serão santos, mas o próprio Jesus Cristo de novo penitenciado pelo peso da realidade, neste caso não em Sevilha como no romance de Dostoeivski, mas por trás do romântico jardim de S. Lázaro.
Se Musil tiver razão ao falar da alegoria como «uma relação intelectual em que todas as coisas assumem um significado maior do que aquele que, honestamente comportam», então esta igreja bem pode ser um retrato alegórico da igreja no mundo actual. Ah, mas dir-se-á que o exemplo é péssimo por ser uma pequena igreja protestante num país católico e não poder servir de exemplo. Então e a Notre Dame, o Sacré Coeur, a catedral de S. Pedro ou de S. Paulo? Grandiosas igrejas, respirando à vontade e enchendo orgulhosamente o espaço urbano, com paragens obrigatórias no sightseeing. Pois, mas cá está então a alegoria que tão bem traduz a crescente secularização moderna que reduziu as igrejas a uma religiosa insignificância, fechando-as, reduzindo-as a meia dúzia de fiéis ou transformando-as em meras rivais da Torre Eiffel, da Fontana di Trevi, da sereiazinha ou do red light district, igualmente locais de culto e de grande devoção para gáudio dos turistas, nomeadamente os da catedral de Barcelona. Podem ser grandes por fora mas, na sua essência, adquiriram uma dimensão liliputiana como a desta simpática igreja entre dois prédios. Há meses entrei numa igreja de Roma para ver uma escultura de Bernini. Estando a decorrer uma missa fúnebre com meia dúzia de presentes, tive que ficar ali um bom tempo sentado na companhia de outros turistas à espera que acabasse o ritual para irmos então ver a escultura. O que estava aquele padre ali a fazer? E aqueles cristãos ou pseudo-cristãos? A atrapalhar, a fazer os turistas perder tempo entre uma pizza e mais um monumento para as selfies da praxe. E é mesmo isso que diz o Grande Inquisidor a Jesus: vieste para nos estorvar e o teu destino vai ser a fogueira. Disse literalmente o que pode também ser visto alegoricamente.