04 novembro, 2022

O FILHO DEVORANDO CRONOS

A memória tem coisas. Vou googlar em busca de Antonio Millán Díaz, o "Carnicerito de Úbeda". Leio que nasce em 1947 e morre em 1976, com 29 anos de idade. Mais um erro wikipédico, pensei, pois não é possível alguém nascer em 1947 e morrer com apenas 29 anos de idade em 1976. Ainda para mais, tendo eu uma fraca cabeça para tanta coisa, com as contas até nem me costumo dar mal. Foi ver repetida essa informação noutros locais que me obrigou a fazer a conta com mais atenção, chegando então à fantástica descoberta de que uma pessoa que nasce em Setembro de 1947 e morre em Novembro de 1976, mais do que poder morrer com 29 anos, tem mesmo de morrer com 29 anos. Vejo apenas duas explicações para o que aconteceu. Ou fui conduzido por um génio maligno que fez de mim gato sapato, ou a minha cabeça já teve melhores dias. Em suma: a minha cabeça já teve melhores dias. E o que aconteceu neste, mais um, pior dia, foi o seguinte. 

Nas minhas gavetas mentais, o ano de 1947, em que nasce Carnicerito, é de um tempo fora do meu tempo, quase apanhando Hitler vivo e em cujos documentários, a preto e branco, anda-se e gesticula-se como um vinil de 78 rotações num gira-discos. Um ano, portanto, de gente velha e com a qual nada tenho que ver. Entretanto, em 1976, ano em que morre Carnicerito, eu tenho 16 anos, portanto, um jovem, como jovem é quem tem 29 anos. Ora, foi aqui que o meu cérebro curto-circuitou, dando origem a uma avaria nos meus circuitos associativos: se quem nasce em 1947 é velho, então, não pode morrer jovem num ano em que eu também sou jovem. Na minha carunchosa gaveta mental isto implicaria admitir que um jovem, como eu, em 1976, poderia ter nascido em 1947, o que seria impossível. Talvez seja próprio da velhice usar a memória com base em cores ou padrões em vez de uma percepção clara dos anos e meses. O que bate certo. Não me perguntem por anos, apenas sei dizer o que foi há muitíssimo tempo, há muito tempo, há já algum tempo, há pouco tempo, recentemente, a semana passada ou o dia anterior. No meio de tudo isto, ainda irei acabar só com o muito e com o pouco. Mas o mais certo é mesmo acabar sem tempo nenhum.