Há dias, ponho um CD para me acompanhar enquanto corrijo testes, umas sonatas para piano de Baldassare Gallupi que não ouvia há bastante tempo e às quais, percebo agora, nunca tinha dado a devida importância. Oiço, não para ouvir como se deve ouvir música, apenas para ajudar a tornar o trabalho mais suportável, dois olhos nos testes e apenas meio ouvido na música. Eis senão quando, já quase a chegar ao fim, infelizmente, não dos testes, mas do CD, há uma sonata para a qual o meio ouvido me obriga a desviar toda a atenção. E volto a repetir para confirmar que não era mentira o que tinha acabado de ouvir: uma coisa linda, mas mesmo linda de morrer e que já compulsivamente volto a repetir, entretanto esquecido dos testes.
Quero saber o nome da sonata mas há um problema. Não é um CD original mas uma gravação, não tendo neste caso, estupidamente (o que vindo de mim é perfeitamente normal), registado os nomes das faixas. Sei apenas que é a faixa 16 do CD, nada mais. Vou então para a Internet em busca da faixa 16, confiante de que irei descobrir rapidamente. Procuro, oiço aqui, oiço ali, incluindo várias faixas 16, descubro mesmo uma versão antiga de Michelangeli, só que nada batendo certo com a minha faixa 16. Até que desisto. Começo então a sentir um grande desconforto, uma sensação de vazio por continuar a ouvi-la sem saber o que estou a ouvir. É de Gallupi, o que já não é mau, mas sem saber o que é. Gosto tanto dela que ligo a aparelhagem apenas para ouvir os seus quatro minutos enquanto tomo café antes de sair de casa quase à pressa. Mas sempre com esse tremendo vazio do nome a provocar-me, como se a própria música ficasse defeituosa por causa dessa ausência.
Até que percebo o tremendo disparate que é estar preso a um nome. Por que preciso eu de sabê-lo? Por que há-de a sua ausência condicionar a minha relação com a música? Eu já sei a música de cor (o mesmo cor que é coeur em Francês ou hearth em Inglês), mesmo agora faço-a soar na minha cabeça enquanto escrevo. Que importa saber se é número 20 ou 21, se tem mesmo um nome próprio ou é em ré maior ou dó menor? E se agora se apagassem todos os nomes que conheço, ficando apenas a sua identidade e memória musical? Seria trágico para catalogar, arquivar, arrumar em gavetas mentais: antiga, barroca, romântica, clássica, jazz, rock, jazz-rock, free jazz, Beethoven, Keith Jarrett, Coltrane sinfonias, quartetos, sonatas, óperas, ópera italiana, ópera alemã, Verdi, Wagner. Mas ficando apenas um arquivo sonoro ad hoc, disperso nas suas mais individuais expressões, meras emanações sonoras afastadas da sua etiqueta, não elevaria a música ao seu mais puro estado, assumindo a sua verdadeira essência, liberta do colete da forma, do conceito? Aquela sonata de Gallupi já me pertence, já não sai de mim, está mais que arquivada. Basta-me saber que é a faixa 16, levando-me directamente ao assunto para aqueles quatro minutos dos quais já perdi a conta.