17 outubro, 2022

UM SENTIDO MATEMÁTICO


Tínhamos quatro criados, todos servos, todos comprados em nome de um latifundiário nosso conhecido. Ainda me lembro de como a minha mãezinha vendeu um deles, a cozinheira Afímia, velha e coxa, por sessenta rublos em notas, e contratou uma criada livre para o lugar dela | Os Irmãos Karamazov, Livro VI, capítulo II

Depois de ler a carta, Ivan ficou convencido. Portanto, fora o seu irmão quem matara, e não Smerdiakov. E se não foi Smerdiakov, também não foi ele, Ivan. Aquela carta ganhou imediatamente, aos seus olhos, um sentido matemático. Para ele não podia haver quaisquer dúvidas quanto à culpa de Ivan. | Os Irmãos Karamazov, Livro XI, capítulo VII


Num futuro longínquo, um ser humano apaixonado por literatura russa do século XIX lê Os Irmãos Karamazov como nós hoje o Decameron, a Divina Comédia ou o Orlando Furioso, concluindo o capítulo II do livro VI. Entretanto, como aprecia coisas antigas, resolve comprar uma fotografia numa feira virtual de velharias, sabendo apenas que data de 2022 e de um país ocidentalmente periférico e do qual nada sabe, do que foi outrora a Europa. Mas uma coisa fica a saber: que não era apenas na Rússia do século XIX que se mantinha a servidão mas ainda no século XXI, no extremo oposto da Europa. 

Entretanto, graças ao que aprendeu nas aulas de História a respeito dos servos da gleba, existir uma agência de compra e venda de servos chamada Casas do Gótico só serve para o confirmar. Ainda assim, um amigo duvida: como pode uma serva para venda estar assim com um ar sorridente? Mas explica-lhe que faz todo o sentido: uma serva feliz tem muito mais valor de mercado do que uma infeliz, sendo por isso obrigada a sorrir para a fotografia pelo seu actual latifundiário para poder render bem mais do que os sessentas rublos, ou lá o que seria na moeda daquele país, da velha e coxa cozinheira. E como também facilmente se pode aferir, nas fotografias daquele tempo era obrigatório as pessoas aparecerem sempre a sorrir, a rir ou mesmo nalguns casos com a boca escancarada como se fossem símios dementes. Daí esta serva não poder divergir do padrão social vigente, evitando-se assim pensar que pudesse ter mau feitio ou ser dada à rebeldia, o que certamente estragaria o negócio. 

O que se passará na cabeça do nosso homem do futuro é o mesmo que na de Ivan com a carta na mão: um sentido verdadeiramente matemático que impede quaisquer dúvidas sobre a existência de servidão num periférico país da Europa em pleno século XXI. Basta somar 2+2 para saber que não podem ser 5, olhar bem o triângulo para logo perceber que não pode ter mais nem menos de três ângulos. Nada que surpreenda pois grande parte da nossa vida mental é feita de padrões que nos ajudam a perceber a teia de relações entre as coisas. E tanto no caso desta serva como na carta que Ivan tem nas mãos, os factos, os dados empíricos, a veritá effettuale della cosa, como diria Maquiavel, a experiência madre das coisas, como diria o nosso Duarte Pacheco Pereira ou madre de las ciencias, desta vez Cervantes através da boca de Quixote, eis a verdade mais pura, oferecida de bandeja aos nossos olhos cristalinos, polidos por ideias claras e distintas que dão um sentido matemático que dificilmente nos demove do que não é possível não acreditar.