16 outubro, 2022

MANHÃ NO TRIBUNAL

E, coisa estranha, todas as damas estiveram absolutamente convencidas, quase até ao último minuto, de que ele seria absolvido: «É culpado, mas absolvem-no por razões humanitárias, pelas novas ideias, pelos novos sentimentos de agora» | Os Irmãos Karamazov

Estranha o narrador o pensamento daquelas damas durante uma sessão de julgamento, mas não menos estranho foi eu dar com a passagem pouco depois de no jornal de que sou assinante ter sido atraído por uma notícia cujo título era «Maltratou a mulher e filho deficiente. Juízes tiraram-no da cadeia por ser idoso». Não sendo meu desejo andar por aqui a espalhar pingos de sangue ou a angariar votos para André Ventura, dispenso os pormenores deste caso protagonizado, não por um homicida russo do século XIX, mas um octogenário lisboeta, ex-técnico superior do Instituto de Investigação Científica Tropical. Só dizer que se trata de uma verdadeira história de terror. Não obstante considerar o caso grave, uma juíza suspende a pena de três anos para lhe dar uma última oportunidade, ficando apenas proibido de contactar a vítima. Mas volta a contactar e de uma maneira muito pouco bonita de se ver. Desta vez um ano de prisão efectiva. Que, entretanto, foi interrompida em virtude de um colectivo de juízes, certamente virtuoso, considerar que estar numa prisão não é adequado a pessoas desta idade, argumentando que ao ter a percepção de que o fim da vida se está a aproximar, fica o idoso impedido de viver os últimos anos com dignidade.

Julgo perceber o que passa na cabeça de um narrador que, em 1879, na Rússia czarista, se refere a «novas ideias» ou «novos sentimentos de agora». Como muitos que não lêem romances russos do século XIX, poderia também vir também falar em novas ideias e sentimentos a insuflar a consciência moral dos nossos juízes, preparando-nos para um mundo mais  justo e humano. Mas custa-me falar em novas ideias ou sentimentos, pois se as juntar às de 1879 fica uma mistura algo sincrética no escuro interior do saco. Talvez deva pensar que naquela Rússia claustrofóbica e desumana fizesse todo o sentido falar na modernidade e bondade de novas ideias e sentimentos, mas que 150 anos depois pode ser um crassíssimo erro de percepção. Ser inovador e moderno hoje já não é o mesmo que no tempo daqueles juízes pois o mundo também já não é o mesmo e o seu optimismo não tem de ser o nosso, podendo o bálsamo de outrora ser combustível para os cenofóbicos deste mundo desejarem um outro mais fechado, parecido até com aquele que os juízes de 1879 quiseram mudar com novas ideias e sentimentos. Com certeza que a virtude estará no meio mas também é uma verdade que está longe de me apaziguar, pois, como bem sabia Aristóteles, nem sempre é fácil. E enquanto uns falham porque não o conseguem, outros acertam por fazerem tudo para não o conseguir.