Honra lhe seja feita, o jornal PÚBLICO está a publicar uma colecção de sete livros que inclui títulos como "Reforma ou Revolução?", "Agonia da Europa" ou "Reflexões sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social". O que une todas estas obras? História? Política? Sociologia? Filosofia? Não: serem "Sete obras fundamentais do pensamento feminino". Quer dizer, Eduardo Loureço escrever "O Labirinto da Saudade" e Joaquim de Carvalho "A Problemática da Saudade" é só pensamento. Mas Carolina Michaëlis de Vasconcelos escrever "A Saudade Portuguesa" já fica difícil de entender sem recorrer ao poder explicativo da progesterona, a qual, ao invés dos vestidos novecentistas roçagando pelo soalho de madeira, elevaram-na ao etéreo mundo do pensamento. Não fosse a progesterona ou mesmo, quiçá, as trompas de falópio, e estaria a insigne intelectual germano-portuense reduzida ao recato do crochet e do chá. Quer isto dizer que enquanto o cogito masculino tem uma natureza cartesiana, sendo apenas uma coisa que pensa, uma res cogitans que diz "Penso, logo existo", já o cogito feminino resulta de uma complexa mistura de res cogitans com res extensa, o que dará uma coisa como "Penso, logo existo com o meu útero e os meus ovários".
Claro que é assinalável, louvável e divulgável, encontrar mulheres inteligentes a escrever coisas inteligentes num tempo em que a maioria se regalava com o crochet e o chá. Como também pode surpreender pegar numa história da pintura e dar com nomes como Artemisia Gentileschi ou Sofonisba Anguissola e depois admirar ainda mais o seu trabalho por terem sido quem foram num mundo de homens. Mas já duvido que, numa prova cega, diante de vários quadros em que Judite trata da saúde de Holofernes, haja alguém que vislumbre num deles a expressão pictórica de uma tensão pré-menstrual. Há uns anos assisti a uma conferência em que uma académica falava de cinema feminino português, filmes bastante diferentes mas que tinham em comum terem sido feitos, como agora se diz, por pessoas que menstruam, ao contrário de filmes que por terem sido feitos por homens são apenas filmes em vez de filmes feitos por pessoas que não menstruam, ou vá, com próstata. Acontece que tal obsessão feminina pela identidade ou especificidade feminina é bem mais atávica do que podemos julgar. Se a quisermos entender, mais do que na Psicologia, na Sociologia ou na Antropologia, é na Teologia que nos devemos centrar.
No Génesis, Deus cria Adão que, sendo um indivíduo do sexo masculino (o que ele virá a tapar com a parra só os homens, e não as mulheres, possuem), é muito mais do que um indivíduo com barba e voz grossa como Moisés, Abraão ou Jacob. Ele é o próprio Homem, o ser humano, a humanidade, o género humano, significando o seu nome em hebraico «terra cultivável». Deus, tantas vezes distraído, repara entretanto que Adão está só, considerando que precisa de uma auxiliar semelhante. Adão olha para o que tem à frente, animais domésticos, aves e animais ferozes, mas não vê ninguém com perfil para seu auxiliar (o que exclui desde logo o bestialismo como hipótese de relação amorosa). Deus resolve então adormecer Adão para dele extrair Eva, à qual chama «mulher, visto ter sido tirada do homem». Insisto no interior das aspas: mulher, visto ter sido tirada do homem. Quer isto dizer que há um homem, que é a humanidade, mas depois há uma parte dessa humanidade que assume a sua condição de mulher, digamos que uma espécie de subproduto da humanidade. Precisamente o que encontramos na colecção do PÚBLICO: um produto feminino enquanto subproduto do pensamento humano. Neste sentido, nem se trata de um segundo sexo, como diria Beauvoir (um dos nomes da colecção) mas do único sexo, uma vez que não me lembro de alguma vez tomar conhecimento de uma colecção de livros masculinos, cinema masculino ou pintura masculina. Em suma: enquanto o homem se limita a ser apresentado como pessoa ou ser humano, a mulher, mais do que humana ou pessoa, é sobretudo mulher. O que, a ser verdade, talvez possa explicar por que até homens como Sigmund Freud morreram frustrados pela sua incapacidade para a compreender.