É possível que de repente, tendo acumulado impressões durante muitos anos, abandone tudo e vá para Jerusalém, em peregrinação para se salvar, e pode ser também que de repente deite fogo à sua aldeia natal, e até é possível que aconteça uma e outra coisa. Há muitos contempladores entre o povo. Smerdiakov era certamente um desses contempladores, e por certo também acumulava as suas impressões com avidez, sem quase saber ele próprio porquê.
Dizer que Doistoievski foi um excepcional escritor não é matéria de opinião ou de gosto. Já no que toca ao seu sentido estético sou levado a pensar que pelo menos com o meu não deverá coincidir. Isto, por considerar notável este quadro de Ivan Kramskoi, chamado O Contemplador, juízo que dificilmente partilharei. É verdade que nunca o vi, nem sequer em livro, e por isso não queria ser injusto, mas pela amostra julgo não precisar de me confrontar com ele na parede de um museu para um mais apurado juízo.
O escritor serve-se dele para o associar a Smerdiakov, personagem fortemente ligada à família Karamazov. Sem amor maternal durante a infância e adolescência, vítima de maus tratos, suportados sem revolta. Foi crescendo insociável, taciturno e desprezando os outros. E, cá está, contemplativo. Não no sentido místico ou religioso mas de se ausentar do mundo ou até de si mesmo, a tal ponto que «se lhe perguntassem em que estava a pensar, por certo não se lembraria de nada, mas em contrapartida guardaria a impressão em que se encontrava durante a sua contemplação», impressões que vai acumulando ao longo do tempo mas sem ter grande consciência disso. Alguns anos mais tarde iremos ver nele um homem inteligente mas ressentido, ressentimento este que o conduz a uma necessidade de insultar, escarnecer, insinuar, acusar, sem que tenha em que se basear para o fazer. Uma vingança face ao seu passado, ao seu percurso de vida, uma energia vital que usa para se defender do que ele vê como ameaçador, a sociedade ou mesmo a própria vida e que ao mesmo tempo o leva ao enlouquecimento.
Vamos encontrar nos três irmãos Karamazov, três filhos do mesmo pai, três modelos de homem, como centro da obra. Mas é com Smerdiakov que consigo aproximar-me mais de um certo tipo de homem do século XXI. Fechado sobre si próprio, carregando um passado difícil às costas, movido mais por impressões do que por um apuramento rigoroso da verdade, seguro das suas convicções e cujo ressentimento acumula muita cólera para expelir com ausência de filtros. Há muitos contempladores entre o povo, diz o narrador. No seu tempo e no nosso, gente que precisa de magoar e insultar porque também magoada ou insultada, ou crendo-se magoada ou insultada. O que faz do povo, tal como Smerdiakov, uma massa perigosa. Que tanto podemos encontrar na igreja ao Domingo de manhã a rezar, como depois de almoço a destilar toda a sua raiva no táxi, nas redes sociais, no futebol, na rua, alimentada mais por impressões que não sabe de onde vêm e para aonde vão, do que por razões.