14 outubro, 2022

A CHEGADA



Tendo regressado de Moscovo cinco dias depois da morte do pai, nem sequer lhe vira o caixão. o funeral realizara-se na véspera da sua chegada. O atraso de Ivan Fiódorovitch deveu-se a que Aliocha, não conhecendo o endereço dele em Moscovo, recorrera a Katerina Ivánovna para o envio do telegrama; ela, não conhecendo também o endereço exacto, telegrafou à irmã e à tia, supondo que Ivan Fiodorovitch as visitaria logo que chegasse a Moscovo. Mas ele só as foi visitar no quarto dia depois de chegar e, ao ler o telegrama, correu logo naturalmente a toda a pressa para a nossa cidade. | Os Irmãos Karamazov

O tema destes dois quadros de Ilya Repin é algo prosaico: a inesperada chegada de alguém, neste caso, uma estudante e um exilado, conseguindo o pintor congelar de modo tão realista e fotográfico o que teria sido diferente um segundo antes ou um segundo depois, tal é a força centrípeta das poses e expressões dos protagonistas neste único e irrepetível momento. E apesar da maior eloquência do segundo, cujo título «Não o Esperavam» só por si exprime bem o Instante Decisivo de Cartier-Bresson, tanto num como no outro é-nos revelada uma hierofania: a irrupção de uma entidade sagrada no mundo profano, o sobrenatural e a realidade quotidiana tocando-se num mesmo plano, ainda que com naturezas distintas. Não da maneira que vemos em muita pintura religiosa, sobretudo barroca, uma vez que nestas duas cenas tudo é natural e profano, mas pelo modo como a presença de quem chega é recebida na consciência de quem está.

Há três grandes clássicos no ruído geral da comunicação contemporânea: primeiro, o clássico dos clássicos «Onde estás?», segundo, a pessoa que minutos antes de chegar a um sítio telefona, sem disso precisar,  para dizer que está quase a chegar e, por fim, duas pessoas que combinam encontrar-se, por exemplo, num centro comercial, uma delas telefona para saber da outra, começam a falar e vão-se orientando até aparecerem uma em frente à outra com o telefone no ouvido. Eu usei a palavra «apareceram», que remete para a ideia de aparição. E é aqui que faz toda a diferença o modo como alguém aparece no século XIX e nos nossos dias. Dando ao ser humano o dom da ubiquidade, a técnica atenuou distâncias, permitindo seguir permanentemente o rasto de outra pessoa. Neste sentido, nunca há uma verdadeira aparição, já que também não chega a haver uma verdadeira desaparição. Podemos não saber onde está mas basta premir nove botões para o ouvir dizer (ou ler) «Estou aqui». E quando chegar o momento do «estar aqui» se tornar «um estar aqui» físico, não pode ocorrer um verdadeiro encontro entre este nível físico e um outro metafísico. Para o que contribui igualmente a eliminação do tempo humano do corpo, também graças à técnica. Pode-se não «estar ali» mas há sempre um carro, um comboio, um avião que rapidamente anula a distância física entre dois corpos, e no caso desta não ser possível haverá sempre o WhatsApp, o Meet, o Skype para tornar presente o que está ausente. 

Sim, continuaremos a surpreender-nos por ver um dia tocar à nossa campainha quem não esperávamos, encontrar na rua ou supermercado alguém que não víamos há anos ou estar em Machu Picchu e dar de caras com um conterrâneo, embora se torne cada vez menos improvável. Neste caso, temos apenas uma realidade cuja textura é também feita de contingências, como encontros acidentais entre pessoas que se movimentam no mesmo plano infinito onde tudo pode acontecer, uma vez que qualquer pessoa se pode movimentar por qualquer lado. Não se trata por isso de uma hierofania. Mas também jamais será hierofania a chegada de alguém de quem tudo se sabe antes de chegar. E chegar, hoje, é quase sempre a chegada de alguém de quem se está à espera e de quem tudo se sabe antes de chegar: horários dos comboios, autocarros, aviões, o tempo que demora o carro entre o sítio onde está e o sítio onde irá chegar. Mas não é isso que vemos nestes dois quadros. No tempo em que Doistoievski escrevia e Repin pintava, o que a chegada revela é a sobrenatural aparição de um ente transcendente de novo transformado numa pessoa de carne e osso, mas como se o fosse a primeira vez. É precisamente isso que testemunham todos estes pares de olhos tão perplexos como diante de um deus que encarnou para viver entre os homens.