Dizia-me há dias alguém que tinha descoberto a palavra plenilúnio. Eu também não sabia o significado mas associei-a ao título de um romance que apesar de nada me dizer, alguma coisa me dizia ser espanhol ou sul-americano e que devo ter visto há anos numa livraria ou a passar os olhos por um jornal ou revista. Mas título tão estranho soou-me demasiado familiar para uma coisa que tivesse visto apenas de passagem, sendo então visitado por uma intuição que me fez dar um salto até uma estante onde se fala espanhol para logo descobrir um romance de Antonio Muñoz Molina chamado Plenilúnio. Cá está, espanhol, sul-americano, batia certo. Ora, ter um livro sem saber que o tenho é como não o ter, estando agora ali nas minhas mãos como se acabado de chegar pelo correio. Conheço bem o escritor espanhol, ou melhor, não conheço, digo conhecer no sentido em que se vir a sua fotografia num jornal sei quem é e como se chama, já terei mesmo lido uma ou outra entrevista com ele apesar de nada me lembrar do que li, tendo para além disso um ar simpático e afável. Decido então que chegara a hora de ler um livro seu e sento-me a ler o recém-adquirido Plenilúnio.
O facto de andar há semanas de volta dos manos Karamazov não colide com a leitura. Tenho sempre uma leitura principal mas também outras coisas ao mesmo tempo, umas novas, outras, breves releituras. Neste caso, a leitura de Os Irmãos Karamazov é ela mesmo a releitura de uma leitura de há 30 anos. Tirando as partes de que toda a gente se lembra ou de que toda a gente se lembra mesmo sem nunca o ter lido, eu já não me lembrava de nada e estar a reler um livro do qual não nos lembramos é como estar a lê-lo pela primeira vez. Quer isto dizer que começo a ler um livro que acabara de adquirir ao mesmo tempo que estou quase a acabar um outro que leio pela primeira vez, o que nem uma coisa nem outra são verdade. Entretanto começo a ler Plenilúnio e gosto do que leio apesar de não gostar do que leio pois o centro da acção é o bárbaro assassínio, por asfixia, de uma menina que saíra de casa para ir à papelaria em frente comprar uma cartolina e uma caixa de lápis de cera para fazer um trabalho de casa, ainda para mais, tal como eu na idade dela, adorando o cheiro das papelarias. Isto, um dia antes de um jornal me dizer ter sido uma menina assassinada por asfixia, em Paris, aparecendo perto de casa dentro de uma mala.
Plenilúnio, sei-o agora, tem que ver com lua cheia, caramba, que outra coisa pleni+lúnio poderia ser, a cabeça humana é coisa muito estranha, feita para umas vezes perceber coisas difíceis mas também para não perceber o que está chapado diante dos olhos. A lua cheia é coisa bonita de se ver, que o digam os amantes, mas também coisa tenebrosa de se ver. Pode não ter nada que ver, mas plenilúnio está de certo modo relacionado com a luxúria. Acontece que luxúria remete mais para a luz do dia, um excesso de Sol que queima a visão mas sobretudo a alma, enquanto plenilúnio remete para a luz da noite que também pode queimar. Pois se há quem pense que a noite se fez para amar, também há quem pense que se fez para matar. E se há luz há sombras, logo nada como um belo plenilúnio para um filme expressionista alemão. Entretanto, graças a Plenilúnio já aprendi mais duas palavras novas para além da propriamente dita: dissídio e codícia. Vamos lá ver se um destes dias, talvez numa aula, consiga usar umas destas palavras, ninguém vai perceber mas também não tem mal, provavelmente já estão habituados. Mas ainda que alguém se lembre de ir pesquisar, de certeza absoluta que, ao contrário de plenilúnio, não irá levar à leitura de qualquer romance, seja ele qual for, incluindo um daqueles que nos baralha sobre o momento em que acaba a ficção e começa a realidade.