23 outubro, 2022

O TERCEIRO HOMEM

Nesse fim de semana de Dezembro, em Viena, em vez de um hotel, optei pelo 4ºandar de um prédio residencial, numa parte da cidade que apesar de central estava um bocadinho afastada do centro, mas sem precisar de recorrer ao metro que ficava logo ali. Um prédio digno, mas algo antigo. Ao sair do apartamento no domingo de manhã, espreito pela janela das escadas e logo percebo que está um dia frio e escuro, a última coisa coisa que se associa a um dia de Verão turisticamente sobredosado. Entretanto, à medida que vou descendo, apercebo-me do choro de um bebé, inicialmente longínquo mas que a pouco e pouco se vai adensando, até que já no 1ºandar consegue atravessar a plenos pulmões as paredes do apartamento, acompanhando-me por fim até à porta de saída que me deixa numa rua vazia e silenciosa. Foi das melhores experiências que tive enquanto turista, precisamente por não me ter sentido turista. Dir-se-á que o choro de um bebé é igual em todo o lado e que estar a ouvir um bebé ali ou noutro sítio qualquer como, por exemplo, a atravessar o corredor de um hotel, vai dar no mesmo. E vai. Sei bem o que é choro de um bebé, para além de ter criado dois filhos, até há pouco morou por baixo de mim um casal com uma filha que em tempos revelou umas goelas bem afinadas.

Mas isso é de um ponto de vista meramente objectivo e a consciência humana não é o hardware (nem o software) de um computador. Veja-se, por analogia, a experiência de estar diante de uma obra de arte original e da sua perfeita falsificação. Se numa prova cega são indistinguíveis, tudo muda ao sabermos qual é uma e outra. Porque há uma aura na primeira da qual a segunda está despojada. Foi aquele e só aquele quadro que esteve nas mãos do pintor e para o qual olhou, só aquelas tintas são verdadeiras, pintadas há décadas ou séculos e não por alguém apenas com jeito para pintar. Daí que a destruição da primeira seja uma perda trágica e irreparável, já com a segunda, por muito que seja o seu valor artesanal, não há uma sensação de perda. Sim, um prédio é um prédio, uma manhã de Inverno é uma manhã de Inverno, um domingo de manhã é sempre um domingo de manhã, e sim, são também iguais o choro de um bebé torrejano, de uma criança americana num quarto de hotel e de uma criança vienense no seu apartamento. Mas não. O choro daquele bebé, nas escadas daquele prédio, naquela manhã de domingo de um dia de Outono que era mais de Inverno, é absolutamente único e irrepetível, uma fantástica maneira de começar o dia naquela cidade quase a 3000 quilómetros de distância da minha. Daí que, naquele preciso momento, naquele terceiro dia em Viena, eu também não tenha sido exactamente o mesmo homem dos dias anteriores.