22 outubro, 2022

O BEIJO ROUBADO

Egon Schiele | Cardeal e Freira (Carícia), 1912

Uma das características das nossas emoções básicas é a sua pronta resposta face a um estímulo que, no meu caso, foi de quase repugnância ao dar no Público com um imagem de O Beijo, de Gustav Klimt, a qual acompanha um texto de divulgação do DVD Klimt e Schiele - Eros e Psique. Como explicar tão estranha e desgostosa sensação diante de uma imagem que durante anos tanto me deslumbrou? Mas como diria Demócrito ou Terêncio, ou se calhar os dois, não é por ser estranho que não tem explicação e das duas uma: mudou o quadro ou mudei eu. Ou seja, fui eu. E quem me vai ajudar a explicar tão estranho fenómeno é Walter Benjamin, figura maior do pensamento europeu do século XX, que viria a ter uma morte estupidamente trágica nos Pirinéus. 

No Verão de 2018 passei uma semana em Viena e o Museu Belvedere, onde se encontra o quadro, fazia obviamente parte do programa. Há museus que têm um dia da semana com horário nocturno, o que é excelente para aproveitar melhor a luz do dia, e a minha peregrinação ao Beijo coincidia com a véspera de vir embora. Acontece que nessa noite havia excepcionalmente um concerto, estando por isso encerrado o acesso à colecção. Grande pontaria, pensei eu. Porém, já havia qualquer coisa que me andava a incomodar com aquela imagem: vê-la, juntamente com a imperatriz Sissi, reproduzida por toda a cidade, como a Torre Eiffel em Paris, o Manneken Pis em Bruxelas ou o eléctrico em Lisboa. O golpe final acabaria por ser no aeroporto. Continuando a grande competição com a Imperatriz, beijos por tudo o que era sítio: copos, chávenas, tabuleiros, lenços de papel, guardanapos, bases de plástico, ímans, marcadores de livros, posters, almofadas, chapéus de chuva, e sabe Deus lá mais o quê, não me lembro se também papel higiénico.

Em Dezembro do ano seguinte voltei mas só um fim de semana para uma daquelas exposições de uma vida e que jamais poderia perder: Bruegel, o meu Bruegel em directo e ao vivo no Kunsthistosriches. Mas nos entretantos lá ia apanhando com beijo à esquerda, beijo à direita, sentindo dentro de mim um crescente e insuportável enjoo com tanto beijo. Daí uma resolução dramática que me fez perceber que o elo entre mim e aquele Beijo estava irredutivelmente quebrado: em vez de aproveitar o domingo de manhã, como havia chegado a pensar, para rumar ao Belvedere, e mesmo que dessa vez fosse para o Beijo propriamente dito, resolvo antes enfiar-me na casa-consultório do dr. Sigmund Freud, embora já demasiado tarde para tratar da minha neurose oscular, até porque nem teria consulta marcada. E pronto, foi neste estado que fiquei e do qual muito provavelmente não voltarei a sair. Do deslumbramento inicial à renúncia total, eis o resumo desta triste história, que pode ser explicada por Walter Benjamin num pequeno texto chamado A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica.