27 outubro, 2022

CRENÇAS BÁSICAS

Robert Doisneau, 1950's

No tempo em que havia o Curso Geral dos Liceus, havia também o que se conhece hoje como cursos profissionais cujos alunos, ao contrário dos actuais, não tinham de aprender Economia, História, Ciência Política, Filosofia, Geografia, Ecologia ou Psicologia. Por falar em Psicologia, eu lecciono Psicologia a uma dessas turmas cujo programa me obriga a explicar coisas de natureza muito pouco profissional como a introspecção controlada de Wilhem Wundt, o movimento cognitivista ou a diferença entre o ego, o superego e e id. Na última aula estava a tentar explicar o reflexo condicionado de Pavlov quando um aluno (desta vez, trata-se de uma turma de rapazes, apenas duas raparigas. A disciplina é obrigatória) pergunta o que é um estímulo, isto, depois de eu explicar que o cão saliva por ter observado um pedaço de carne, sendo este o estímulo. Fica difícil para um professor ter de explicar o que é um estímulo mas faz parte das funções de um professor arregaçar as mangas para enfrentar qualquer desafio. Já não sei o que disse, mas sei que nada melhor do que um exemplo para quando não se vê o que está diante dos olhos. E dei o exemplo de uma luz forte que entra de repente num quarto escuro que obriga a fechar de repente os olhos. Dado o exemplo, perguntei: o que é aqui o estímulo e o que é a resposta? Resposta: fechar os olhos é o estímulo, abrir a janela é a resposta. Não querendo desistir, e embora já não me lembrando do que tentei explicar, sei que tentei explicar alguma coisa, sabendo ainda, ou acreditando saber, que o aluno acabou por perceber alguma coisa também. 

Ao contrário do que se possa pensar, eu gosto deste tipo de desafios, um exercício mental tão louvável como fazer palavras cruzadas, resolver enigmas ou Sudoku. Mas não é só isso. Na Epistemologia joga-se com o conceito de "crença básica", uma crença autojustificativa que por esta razão não carece de outra crença para poder subsistir. Eu digo assim: acredito que está a chover na rua. Alguém me pode perguntar como posso garantir ser a minha crença verdadeira, e eu respondo que fui à janela ver se estava a chover. Portanto, a minha primeira crença não é básica pois pode precisar de outra para  a justificar. Se entretanto me perguntarem como posso ter a certeza de que a chuva que estou a ver pela janela não é uma ilusão, eu poderei descer as escadas, ficar dez minutos na rua e depois aparecer todo ensopado à frente da pessoa para lhe provar que está a chover na rua. Quer isto dizer que a minha crença de que está a chover na rua porque fui ver à janela poderá não ser assim tão básica quanto isso. Entretanto, se for uma pessoa normal, ao contrário de um céptico radical que se sinta perseguido por um Génio Maligno que pode levá-lo a errar, ainda que perante a experiência mais óbvia ao cimo da terra, é capaz de, finalmente, ficar convencida. Digamos então que acreditar que está a chover na rua porque estou todo ensopado, é uma crença básica. Ora, mudando o que há para mudar, é este tipo de desafio que aprecio quando estou diante de alunos que parecem ter sido atacados por um Génio Maligno. Ao tentar tornar tudo o mais superficial possível, acabo por ir aos aspectos mais profundos do nosso conhecimento. Sim, o mais superficial pode confundir-se com o mais profundo. E isto, em mais coisas até do que possamos imaginar. Mas isso já seria outra conversa.