Como muito bem explica o Antigo Testamento e tantas vanitas, a morte não tem hierarquia, sendo a única utopia igualitária a poder vingar o que o nascimento separou. Mas para a humanidade que continua viva, há mortes públicas mais dramáticas do que outras. Podemos estimar muito um grande estadista, reconhecer a sua importância na história. Mas a história, como um navio, prossegue a viagem, melhor ou pior, comandada por este ou aquele. O mesmo com actores. Por muito bom e querido que seja, nenhuma personagem vai deixar de ser representada no teatro ou cinema por causa da sua morte. Hamlet há só um, Desdémona há só uma, mas nunca faltará quem vista a sua pele. Sim, claro, morta a Callas nunca mais tivemos aquela Rosina a cantar Una Voce Poco Fa mas nunca deixou nem deixará de ser cantada. De resto, quando Rossini desenhou aquela voz, estava a Callas ainda muito longe de nascer.
Completamente diferente o que se passa com um criador. Por exemplo, um escritor. Os livros que o escritor nunca virá a escrever porque, entretanto, morreu, nunca haverá quem venha a escrevê-los. Não são mundos que irão deixar de existir, como acontece ao longo da nossa história feita de mundos que nascem e morrem, mas mundos que nunca chegarão a existir. O escritor cria o seu mundo como o demiurgo de Platão, entretanto baptizado pelo cristianismo: o espírito a fervilhar de ideias e um compasso na mão para o desenhar, como vemos representado em certas iluminuras medievais ou mais tarde com a pintura de Francisco de Holanda ou no Newton de William Blake. No caso do escritor, mundos que, ao contrário do nosso próprio mundo de carne e osso com os seus imprevistos, acidentes, irregularidades, ficarão para sempre suspensos numa preclara e imutável perfeição, onde já nada se ganha e se perde a partir do momento em que o escritor guardou o compasso no estojo. Os leitores vão nascendo e morrendo nos seus próprios mundos que também morrem, mas o "romance", seja a Odisseia, o Quixote, Os Maias ou Berta Isla, ali estão eternamente nas suas olímpicas prateleiras à espera de serem relidos enquanto houver quem queira ou saiba lê-los. Que mundos iria o escritor desenhar com o seu compasso se não morresse? Ninguém pode saber, e ainda bem que assim é, pois é muito mais fácil lamentar o desconhecimento do que nunca chegou a existir do que o que aconteceu naquela abadia medieval diante do olhar incrédulo de Guilherme de Baskerville.