24 setembro, 2022

TEMPO PTOLOMAICO


Umas boas horas e centenas de quadros ou fotografias depois, um pobre mortal sai de um museu com a cabeça a abarrotar de informação. Daí eu ter o moderno hábito de fotografar coisas que acabo de conhecer e me interessam com as respectivas fichas técnicas, evitando assim que se desvaneçam num gasoso esquecimento. E esquecer uma coisa é como se nunca a tivéssemos visto, ambas desaguando no mesmo mar de esquecimento, isto, claro, num sentido fenomenológico, pois num outro psicológico já não é bem assim. 

Não foi este o caso uma vez que nem sequer fotografei o quadro, mas apenas o que de repente e por mero acaso despertou a minha atenção: a data. Que imagino profundamente enigmática em 3022, já depois de quatro guerras nucleares, num mundo que nada sabe de arte e história da arte, apenas de arqueologia. O que não aconteceria se em vez de 82 surgisse 1882. O que terá levado o pintor a esta escassez numérica? Talvez o mesmo que leva um português, a quem pedem para desenhar o mapa da Europa, a começar por Portugal e não pela Itália ou Suécia. Isto, porque assumimos o nosso espaço como um centro rodeado de periferia por todos os lados, embora no caso de Portugal mais periférico seja difícil.

Quando encontro alguém do meu tempo (do meu tempo!) que não vejo há muito e comparamos as idades, digo que sou de 60 como o outro dirá que é de 59 ou 61. Isto por não haver outra possibilidade, como 1760, 1860 ou 2060, do mesmo modo que o "tá" de "tá bom?", jamais poderia ser um "tá" de tábua, atávico ou tafetá. Quando ainda hoje nos referimos aos "loucos anos 20" é porque não podem ser outros. Pode ser isto que acontece com este quadro. Quando em 1926, ano em que morre, o pintor pensa em 1882, só pode pensar no seu 82 tal como o pensou no ano em que o pintou. Mas mais do que pensar no seu 82, pensa que o 82 é seu.

Mas não é, como o 60 não é meu mas também de Ensor, Levitan, Lalique no século XIX, de Cherubini, Sant Simon ou Rouget de Lisle no século XVIII, havendo de ser igualmente dos que nascerão em 2060. Portugal não é o centro da Europa nem o nosso tempo o centro da história. Mas não há volta a dar: na percepção do tempo e da história, Ptolomeu ganhará sempre a Copérnico, que nasceu em 73, o mesmo ano de Rachmaninoff e em que nasceu o semanário Expresso, jornal que, como qualquer outro, tem o dom de transformar as notícias da semana anterior na coisa mais velha do mundo.