22 setembro, 2022

IAGO

Um nada ligeiro como o ar é prova/ Maior que as escrituras./ Ist' algo há-de dar./O Mouro já vai mudando co'o o meu veneno;/ As ideias funestas são, em si, venenos,/ Que, de início, mal se distinguem por um travor,/ Mas que a pouco e pouco agem sobre o sangue,/ Ardendo como enxofre.        
                                              Edição Relógio de Água, tradução de Manuel Resende (com muito que se lhe diga, digo eu)

Ontem aconteceu-me uma coincidência, ironia, seja lá o que for, engraçada. Por mero acaso, invoco dois escritores, Shakespeare e Dostoievski, pois o que eu pretendia nada que tinha ver com um ou o outro. Calhou. Poderia não ter invocado, não beliscaria nem um um pouco a ideia central que queria vender. Entretanto, volto a pegar nos Irmãos Karamazov e quem haveria logo de aparecer? Exacto: Shakespeare. Mais concretamente, o Otelo, fazendo-me sentir aquele desejo de revisitar partes dos livros sempre disponíveis para lá voltarmos. Volto então a sentar-me mas agora na companhia do bardo inglês. 

Há muito que o digo: a peça não se deveria chamar Otelo mas Iago. Sem pôr em causa a densidade psicológica do Mouro de Veneza, é Iago o seu verdadeiro centro e quem mais marcas deixa no leitor ou espectador (não falo no ouvinte da ópera de Verdi por já ser outro campeonato). A riqueza de um clássico, é Calvino quem o diz, está na possibilidade de ser eternamente lido sem perder a sua frescura. E essa riqueza será tanto maior quanto mais quem vier a lê-lo encontrar um significado que jamais passaria pela cabeça do seu autor. Há um Iago de Shakespeare mas também um Iago património intemporal da humanidade embora cada tempo histórico possa ter o seu. Iago é o asco, a peçonha, em forma de gente. Ambição, egocentrismo, cinismo, dissimulação, perfídia, inteligência venenosa, hipocrisia, todo um cocktail esperando inocentes vítimas depois de bebido. 

Quem será então o Iago já mais nosso do que o original? Claro que, individualmente, não nos faltam Iagozinhos como o de Shakespeare. Sempre os houve e haverá, é universal. Não é nesses que penso agora mas nos que maquinam na sombra para manipular consciências, forjando estados de alma e comportamentos para alcançarem objectivos políticos ou económicos. Fingem pôr a verdade à frente dos nossos olhos quando, afinal, nada mais é do que ludibrio. O que é verdadeiramente dramático em Otelo e punge o leitor é o que ele vê diante dos seus olhos, induzido por Iago. Tudo claro, tudo óbvio, tudo real e não sonhado ou imaginado. Como negar o que é tão evidente? Mas, sendo evidente, é falso, estando Otelo impossibilitado de o descobrir pois a sua consciência já está suficientemente contaminada pelo veneno bebido nas palavras de Iago, forçando-o a ver o que não é ou a não ver o que é.

Uma coisa é o erro em que todos, involuntariamente, podemos cair, fruto de naturais acidentes do nosso entendimento e vontade. É a vida. Outra coisa é a nudez da verdade tapada por diáfanos mantos de mentira, feitos em teares clandestinos por lobos com pele de cordeiro. Iago é um construtor de enganos, sacrificando acintosamente a verdade para adquirir vantagem pessoal. Otelo perdeu a batalha provocada por Iago, acabando tudo em tragédia. Nós não podemos perdê-la mas fica cada vez mais difícil. É mais fácil lutar contra moinhos de vento do que contra nadas ligeiros como o ar e que conseguem ter maior força de prova do que as escrituras.