Émile Zola, numa passagem relativa ao Salon de 1875: «O Sr. Fantin-Latour, um pintor naturalista com uma grande ciência da cor, expôs o retrato de uma senhora e um cavalheiro, uma das melhores telas do salão». E acrescenta: «Fantin é um dos pintores da jovem escola naturalista. Já conheceu um grande êxito, mas as suas obras são particularmente apreciadas em Inglaterra; envia para lá quase todas as suas telas. Trata-se de um especialista muito hábil e as cópias que executou das Bodas de Canaã gozam de uma popularidade entusiástica».
No já longínquo ano de 2009 vou a Lisboa para uma imperdibilísssima exposição de Fantin-Latour na Fundação Gulbenkian. Talvez por forretice, não comprei o catálogo, estupidez da qual me redimi há dias ao passar por lá, e do qual retirei este comentário de Zola onde vejo com enorme estranheza o "Sr." (Monsieur) antes do nome. Estranheza que julgo poder explicar graças a um fenómeno a que Stendhal chamou "cristalização" e que lhe serviu para uma célebre explicação do fenómeno amoroso. Ao visitar umas minas de sal perto de Salzburgo, o escritor francês observa o que já foi um galho de árvore seca atirado por um mineiro, mas entretanto coberto de pequenas cristalizações brilhantes. Sendo para ele o amor a «operação do espírito que extrai de tudo aquilo que se lhe apresenta a descoberta de que o objecto amado tem novas perfeições», percebe-se assim a comparação entre tal operação do espírito e o galho cristalinamente brilhando.
Creio que o mesmo se passa com pintores, compositores, escritores, filósofos, cientistas cujos nomes se transformam em brilhantes formas puras desligadas de qualquer conteúdo empírico. Podemos ler toda a biografia de Kant ou Beethoven, mas nunca nos passará pela cabeça pensar neles como "Herr Kant" ou "Herr Beethoven", e o mesmo para um "Sr. José Maria Eça de Queiroz". Formas puras ou marcas, objectos cujas qualidades e funções estão condensadas num nome. Graças à Internet podemos ver filósofos confraternizando alegremente durante um nocturno momento de descontracção após a secura de um dia de congresso, alguns deles já com assinalável euforia etílica*. Embriaguês catedrática, diria o nosso grande e sempre oportuno Camilo. Filósofos serão e até conhecidos no meio, mas não supreende. Porque ainda não estão condensados em conceitos ou marcas iluminadas na montra de uma luxuosa loja, como já serão Wittgenstein ou Popper, que será "Sir", mas dificilmente vemos como "Mr. Popper" ao lado de Platão e Descartes.
Habituados, pois, a um "Fantin-Latour" fixado no seu inteligível e cristalizado mundo em vez de um cavalheiresco "Sr. Fantin-Latour", também o resto dito por Zola soará estranho. Primeiro, a ideia de expor, como se fosse a uma entrevista para um emprego. E expor o quê? O retrato de uma senhora e de um cavalheiro. Ora, onde ele vê o retrato de uma senhora e de um cavalheiro que viria a ganhar uma medalha de segunda classe com os respectivos 500 francos, nós vemos o Retrato de Mr. e Mrs. Edwards no tal mundo cristalizado em que o pintor passou a viver, mesmo que seja num local físico e público como, neste caso, a Tate de Londres. E mesmo sabendo-se serem ambos amigos do pintor, tal dado empírico não é suficiente para transformar o platónico Retrato de Mr. e Mrs. Edwards num retrato de dois amigos do pintor. Mesmo assumindo-se como normais dados históricos de quem ainda não foi consagrado em França, não deixa de soar estranho associar a marca Fantin-Latour a alguém elogiado por ser "muito hábil" e "popular" pelas suas cópias, neste caso das Bodas de Canaã. Sim, Fanti-Latour, fartou-se de copiar, Tintoretto, Ticiano, Rembrandt, Ingres ou Delacroix, sendo isso normal e até desejável na experiência de um pintor. A questão aqui é pensar nele ainda neste estado larvar, com o holofote focado nas vicissitudes históricas ou factuais de alguém que ainda não é o que irá ser para sempre.
* Sugere-se o Todas as Almas, de Javier Marías.