21 setembro, 2022

AFORISMOS DA AMARGURA

Há quadros que me ferem a vista pelo seu mau gosto. Não digo feios pois podem ser feios sem terem mau gosto. Agora, como explicar a diferença entre quadros parecidos, uns de que gosto muito, outros horríveis, sendo bastante ténue a fronteira que distingue o seu bom gosto do seu mau gosto? Não consigo ter um critério. Vejo, gosto ou não gosto, mas não consigo explicar porquê, como não sei explicar porque detesto iscas ou adoro polvo à lagareiro, ou porque fica o meu sistema nervoso em estado de graça com o Rondeau da Abdelazer, um magnum de amêndoa a derreter-se nos ouvidos, ou mentalmente esgotado com 15 minutos de Paganini.

Veja-se agora a seguinte frase: «Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo». Ou esta: «Não chores porque acabou, sorri porque aconteceu». Ainda esta: «Vida é 10% o que acontece a você e 90% como você reage a isso». Para terminar: «Acredite: sempre tem algo bom guardado em você». Estas frases estão para o meu entendimento como um prato de iscas para as minhas papilas gustativas. De fugir. Porém, creio que neste caso consigo explicar porquê: o contexto. Se pensarmos no seu conteúdo podemos ser levados a concordar com todas elas. As frases em si não têm mal nenhum, podem ser mesmo verdadeiras e em certas circunstâncias até terem um valor pedagógico. O seu problema é mesmo o contexto, ou diria antes, a falta dele. 

Consigo imaginar uma peça de Shakespeare na qual uma personagem diz: «Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo». O teatro dele está cheio de frases assim. Acontece que Shakespeare é um belíssimo escritor que nada nos faz associar ao mau gosto. Veja-se agora a seguinte frase: «O paraíso está escondido em cada um de nós, está mesmo agora escondido em mim, e se eu quiser, amanhã mesmo, ele será uma realidade para toda a minha vida». Ah, ah, foleiro ou não foleiro, eis a questão. Fica difícil, não? Mas vou arriscar: se a frase for retirada de um daqueles sites de citações de gente célebre, se andar a vaguear pelo Facebook ou Instagram como mensagem do dia, se aparecer num postal com um pôr do sol e um casal vestido de branco a abraçar-se, fica naturalmente difícil de suportar. Mas não. Li-a há dias num romance chamado Os Irmãos Karamazov, um obra primíssima com quase 800 páginas, e sei quem a disse e porque a disse. E isso faz toda a diferença.

O que contamina a frase com o mau gosto é a sua suposta riqueza espiritual, o seu conteúdo poético-filosófico, a sua aura majestática,  num mundo cada vez mais ignorante, iletrado, inculto no qual o mínimo vestígio de significado que vá para lá da superficialidade quotidiana, é encarado como algo de profundo. Surgem assim como trivialidades que nos são reveladas, fazendo de cada um de nós um pequeno Moisés com acesso a mensagens que nem toda a gente tem o privilégio de conhecer ou compreender. A maré pode estar baixa para um adulto mas parecer muito profunda para uma criança (Ups, parece-me que acabei de criar uma bela frase para o Facebook). Daí que pior, mas muito pior do que: «Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo» será «Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo» (Fernando Pessoa).