18 setembro, 2022

BOTA E PERDIGOTA

Uma Abelha na Chuva

Estão duas cabras nas traseiras de um estúdio de cinema, uma delas comendo a fita de uma bobine aberta. Pergunta-lhe a outra: - Então e que tal, estás a gostar? -Sim, estou, mas gostei mais do livro.

Sempre que se vê um filme baseado num livro anteriormente lido, é inevitável a comparação, quase sempre com vantagem para o livro. Trata-se, porém, de um erro. Ainda que partilhem o mesmo título ou argumento, o acto de ver um filme nada tem que ver com o acto de ler um livro, sendo, digamos assim, dois jogos de percepção incomensuráveis se comparados. O que não acontece com a cabra pois tanto o filme como o livro se decidem nas suas papilas gustativas, podendo, neste caso sim, comparã-los. Mas quando se trata de registos diferentes, fica impossível. O que dizer se nos perguntarem se preferimos Gesualdo ou Shakespeare, Velásquez ou Cervantes, Monet ou Debussy, enfim, quem dos cinco, Picasso, Webern, Joyce, Cunningham ou Antonioni? Esticando mais a corda: um quadro de Rothko ou a Rothko Chapel, de Feldman? Pode-se dizer que se gosta mais do quadro de Rothko do que da música de Feldman ou vice-versa, não por um ser melhor do que o outro mas apenas porque se gosta de um e não se gosta do outro com base em juízos de gosto que, como linhas paralelas, não chegam a coincidir. Assim sendo, no caso de um filme baseado num livro, pode-se então dizer que se gosta mais do livro do que do filme, sim, mas apenas porque se gosta mais de ler do que de cinema. Ou que o livro é fabuloso mas o filme medíocre, não por comparação mas apenas por considerar o livro enquanto livro, fabuloso, e o filme, enquanto filme, medíocre, com elementos críticos distintos para o livro e para o filme, baseados em duas igualmente distintas escalas de valores.