16 dezembro, 2023

O BARCO DE TESEU

Durante a caminhada, resolvo fazer um desvio pelo João de Deus, que frequentei durante dois anos há quase sessenta, e por onde há muito não passava. Pelos vistos, muito mesmo: o edifício já não existe, estando agora lá outro completamente diferente, acontecendo-me o mesmo que a um londrino que tivesse vivido no século XVI e, ressuscitando agora, desse com o The Gherkin no lugar onde antes esteve a igreja de St. Mary Axe. Paro na rua em frente, que é a mesma, para não observar as longas escadas que subia todos os dias e que já não existem, como também para não observar a entrada principal para o edifício que também já não é o mesmo. No exterior, também não observo o pequeno muro branco que desde sempre existiu, mas um exemplar de arquitectura brutalista. Dou então comigo a pensar: andei ou não andei ali? Há alguma diferença entre o novo edifício e não estar lá nada, apenas um terreno baldio cheio de poças de água? Qual a diferença entre o actual edifício e o mais absoluto vazio? Estar parado naquele lugar, na mesma rua de sempre e vendo até as mesmas casas de sempre, faz-me acreditar que andei ali. Mas o que apenas sempre esteve ali foi um espaço enquanto forma pura, uma abstracção da qual só temos consciência pelos edifícios que lá estão, o anterior e o actual. E no que agora lá está, nunca entrei, nunca aprendi nada, nunca brinquei, nem fiz de S. José no teatro/presépio de Natal. Uma pessoa pede para depositarem as suas cinzas no seu jardim. Se tal jardim deixar um dia de existir para fazer uma garagem e depositarem as cinzas no jardim do vizinho, apesar da proximidade e da terra ser a mesma, nunca será o mesmo espaço, pois as formas também não, assim como o coração que só ali bateu em vez de bater no jardim do vizinho. Porque nós não vivemos no espaço mas em formas que dão vida e narrativa a esse espaço e, tanto um jardim como um jardim de infância, não são espaços mas formas que enformam as nossas vidas. Daí ter visto aquela não observação como uma traição. Mas também é verdade que dentro de poucos anos, já não haverá ninguém que se sinta traído, ficando ali aquele edifício como se sempre lá tivesse existido.