Não sei se por andar bastante a pé, sou intensamente atacado por earworms, aquelas melodias que penetram na nossa mente e das quais, irritantemente, não nos conseguimos libertar. Os dez minutos a pé que separam a minha casa do meu local de trabalho são, neste aspecto, um tremendo foco de infecção, com uma lista de clássicos que, já sei, irão ficar para toda a vida. Vão da música popular (One of These Days, dos Pink Floyd, Kashmir, dos Led Zeppelin, The Mercy Seat, do Nick Cave, The Glowing Man, dos Swans, Fado Corrido, da Brigada Vítor Jara) à música erudita (O ostinato do 1ºandamento da 7ª Sinfonia, de Shostakovich, leva-me imenas vezes ao desespero, um pequeno excerto, breves segundos apenas, da Abertura do Dido e Eneias, de Purcell, mas que na minha cabeça se repete até à exaustão), passando pelo Jazz (Cheek to Cheek, Salt Peanuts, My Favourite Things, versão John Coltrane, ou o terrível e avassalador Take Five). O meu cérebro é completamente invadido por eles, não me deixando espaço para mais nada, uma espécie de grilhões auditivos que me impedem de atingir outros estados mentais. E não é por acaso: são estes, e não outros, por serem os que já ouvi até à exaustão e que ainda hoje oiço. Felizmente, o mesmo não me acontece com as ideias. Daí estar liberto de qualquer ideologia. Gosto de ter ideias, não de ter uma ideologia ou uma visão global do mundo que anule tudo à sua volta. Uma ideologia é incompatível com a liberdade de pensamento, uma vez que se trata de ideias feitas de pedra, pesadas e difíceis de desfazer, esmagando tudo o que se lhes atravesse no caminho. Pensar, compreender, é pensar e compreender caso a caso, situação a situação, pensar numa coisa e ter depois a liberdade para pensar noutra, fazendo e desfazendo ideias de acordo com as indicações que a realidade nos vai dando. O mundo de ontem, o tal de Stefan Zweig, não é o mesmo de hoje e este também não é o de amanhã. Porque haverão as ideias de ser as mesmas, repetindo-se insistentemente, roubando o espaço para outras? E por que não ter ideias contraditórias quando a própria realidade se mostra contraditória? Uma ideologia, seja ela qual for, é tão irritante como qualquer earworm, independentemente da beleza com que cada um deles se apresente aos nossos ouvidos. As sereias da Odisseia também tinham belas vozes, mas isso não fazia delas figuras recomendáveis, daí a extrema utilidade da cera nos ouvidos, deixando-nos a mente livre para prosseguirmos viagem e pelo caminho mais aconselhável de seguir.