Quando comecei a dar aulas era pouco mais velho que os meus alunos, um jovem entre jovens. Hoje, eles continuam a ter a mesma idade e eu sou um sexagenário. Contudo, e algo paradoxalmente, hoje sinto-me mais próximo deles, vendo-os mais reais do que os meus primeiros alunos. Comecei a dar aulas na escola onde quase sempre estudei. Saí dela para a faculdade e, passado algum tempo, a ela regressei. Continuava a ser a mesma escola, as mesmas salas de aula, corredores, bar, espaços de recreio, ginásio, assim como o caminho de casa para lá. Porém, os alunos eram outros e não os que tinha lá deixado pouco antes. Olhava para eles e não reconhecia ninguém, como num sonho, neste caso um pesadelo, em que alguém regressa a casa e vai dar com uma outra família em vez dos pais e irmãos. Mas também eu não era o mesmo. Ao entrar na sala de aula, em vez de me sentar ao lado dos outros, subia o estrado para escrever o sumário na secretária e fazer a chamada de alunos que nunca tinha visto. No intervalo, em vez de ir para os espaços de recreio, ia para a sala de professores, onde passei a tratar por tu os que foram meus, que antes olhava com respeito ou até veneração e agora como pares. E ao passar pelos funcionários, estes, em vez de olharem para mais um aluno, diziam bom dia senhor professor. Mas não só. Antes de partir, eu era igual a eles, vivera e sabia mais ou menos o mesmo que eles. E agora não, tinha ido à faculdade e sabia muito mais que eles, estando ali, não para conviver com eles, procurar namorada entre eles, jogar com eles, mas para lhes ensinar o que eu já sabia e eles ainda não. Porém, a minha fresca memória dos anos recentes continuava a pressentir os que já lá não estavam, ou a parte de mim que também já lá não estava. Todos, eles e eu, almas penadas que teimavam em não abandonar o seu espaço vital. Entretanto, há muito que as antigas e jovens almas penadas, tantos as deles, como a minha, partiram, definitivamente, para o seu mundo. Daí que hoje, e como o Deus do Antigo Testamento, eu seja apenas aquele que sou e os alunos aqueles que são. Sem equívocos, sem ambiguidades, sem farrapos de memória a obnubilar a percepção da realidade diante dos olhos. Recebendo todos os anos alunos novos, já os conheço de ginjeira ainda antes de os ver, para sempre libertos de almas penadas a pairar à sua volta, mas que só eu conseguia ver. Como eu me libertei há muito da minha que penava mas já não pena, embora com uma outra que pena mas que nunca chegará a ser penada.