31 outubro, 2023

HISTÓRIA E GEOGRAFIA

Acabo de escrever "Fiz Filosofia Medieval há 40 anos", e sinto uma espécie de abalo. Quando uma pessoa diz que fez alguma coisa há 40 anos, isso há-de ter um grande significado: estar velha. Não só pelo tempo mas também pelo que fiz, pois se dissesse "Entrei para o João de Deus há quase 60 anos", não teria o mesmo significado, uma vez que na  idade em que tal aconteceu ainda não era bem o eu que sou agora, mas uma pré-história deste meu eu. Pelo contrário, o meu eu de agora reconhece-se perfeitamente no eu que fez Filosofia Medieval, olhando para ele como se tivesse sido há pouco, apesar dos 40 anos. E é isso que impressiona, ter sido há muito e parecer que foi anteontem. Uma pessoa distrai-se um bocado e, zás, lá se foram 40 anos. O que aconteceria então se, como as personagens do Antigo Testamento, ou como Orlando, vivêssemos centenas de anos como agora vivemos décadas? Provavelmente iria acontecer com as centenas o que agora me aconteceu com as dezenas que me separam das aulas da Filosofia Medieval. "O quê? D. João VI morreu há quase 200 anos, caramba, como o tempo passa! E há mais de 500 que chegámos ao Brasil? Parece que foi ontem!". Fosse assim e olharíamos de outra maneira, digamos que menos estatística, para o 1/3 da população europeia que morreu na Idade Média devido à peste negra. Como também seria diferente a percepção do terreno onde ocorreu a batalha de Aljubarrota, Austerlitz, Estalinegrado ou o mar de Lepanto ou Trafalgar, grandes e trágicos acontecimentos que, como diz Kundera em A Insustentável Leveza do Ser,  são hoje vistos com uma enorme leveza num manual de História. Mas como não é assim, todas essas acontecimentos acabam por se tornar uma espécie de pré da pré-história das nossas vidas de décadas, de um tempo fora do nosso tempo, como o meu tempo de João de Deus face ao que sou hoje. Mas o que é válido para a história, com a sua pré-história, também é válido para o espaço: quanto mais longe está um acontecimento de nós, mais irrelevante, uma espécie de pré-geografia, face à geografia na qual vivemos as nossas vidas ao longo de décadas, transformando assim tudo numa enorme e bem sustentável leveza.